sábado, 20 de agosto de 2022

POR QUE EMPRESA PAGOU BEM MAIS QUE O MÍNIMO POR CONGONHAS, MESMO SEM RIVAL?

 

Nesta última quinta-feira (18 de agosto), aconteceu a sétima rodada de concessões de aeroportos à iniciativa privada no Brasil. Foram leiloados 15 aeroportos agrupados em 3 blocos regionais. Em particular, chamou a atenção o Bloco composto por 10 aeroportos nos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Pará e Minas Gerais.

Isso porque neste pacote estava incluído o aeroporto de Congonhas, o segundo maior em movimentação de passageiros no país e, potencialmente, muito rentável. Não obstante não ter havido concorrência durante o leilão para esse bloco, o ágio (diferença entre o preço pago pela concessão e o valor mínimo de referência do leilão) pago pelo grupo vencedor foi de 231,02%.

Obviamente, sempre aparece o argumento na mídia de que o ágio poderia estar associado a um erro cometido pelo Estado na avaliação do ativo leiloado. Mais especificamente, o valor mínimo de outorga estaria subavaliado e que o resultado do leilão representaria apenas esse erro. Tenho uma visão distinta no caso do setor aeroportuário.

É provável que a explicação para o ágio seja encontrada na própria característica do modelo de leilão adotado, que é dividido em duas etapas (entrega de envelope fechado e, subsequentemente, lances em viva-voz), sem que as informações sobre os habilitados que enviaram proposta inicialmente sejam publicizadas.

A ideia desse modelo é criar uma dúvida razoável aos potenciais consórcios concorrentes sobre quem serão seus efetivos competidores no certame. O objetivo, em última instância, é induzir os grupos que sejam avessos ao risco (aqueles que têm “medo” de não ganhar o direito de prestar o serviço aeroportuário) a elevar suas ofertas já na primeira etapa.

Para entender essa questão, basta se colocar no lugar do participante do leilão e entender o modelo descrito no edital. Nele está especificado que, na primeira etapa, todos os interessados devem encaminhar suas respectivas propostas para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), por meio de um envelope fechado. No caso, isso ocorreu no dia 15 de agosto.

A Anac, por sua vez, recepcionou todas as propostas, sem informar quais foram os consórcios que, de fato, fizeram alguma oferta pela concessão. Assim, ninguém sabe, nesse momento, quem realmente estará competindo e muito menos quem poderá participar da segunda etapa (leilão de viva-voz). E é aí que as coisas começam a se fechar.

Isso porque o edital estabelece ainda que só poderiam participar da segunda etapa aqueles proponentes cuja oferta atenda, após determinação do resultado provisório da abertura dos envelopes, a, pelo menos, uma de duas condições.

A primeira é a de que o consórcio tenha realizado ao menos umas das três maiores ofertas para aquele Bloco de Aeroportos. A segunda, que o valor oferecido seja igual ou superior a 90% do valor da maior oferta apresentada.

Em outras palavras, a regra da “habilitação” para a segunda etapa do leilão introduz um risco de que alguns consórcios não se classifiquem para essa fase caso não se enquadrem nos termos acima especificados. Assim, pode não ser uma boa estratégia ofertar um valor muito baixo na primeira etapa (envelope fechado), sob pena de não se classificar para a segunda (viva-voz).

E, principalmente, na ausência de conhecimento sobre quem mais estará apresentando oferta na primeira fase e quais os respectivos valores oferecidos, um proponente averso ao risco preferirá elevar seu lance logo no primeiro momento a um valor mais próximo do seu “preço de reserva” (limite que estaria disposto a pagar para operar o Bloco de Aeroportos alvo do leilão).

Nesse sentido, o ágio pago pelo consórcio vencedor, Aena Desarrollo Internacional, pode ter sido reflexo do próprio modelo aqui descrito. Em outras palavras, buscando evitar qualquer risco de perder um ativo que considerava tão valioso, o consórcio pode ter preferido elevar seu próprio lance inicial colocado no envelope fechado e, assim, garantir sua participação na segunda etapa.

Note-se, ainda, que essa estratégia adotada pela Aena teria como vantagem adicional para o grupo sinalizar a potenciais concorrentes, em uma eventual segunda etapa do leilão (de viva-voz), que o consórcio entrou no certame “para não perder”, e que estaria disposto a comprar a briga ofertando lances bem elevados.

De toda forma, independentemente de quais os reais motivos da Aena, fato é que o modelo que vem sendo utilizado está baseado nas melhores práticas internacionais e na própria literatura econômica sobre “teoria dos leilões”. E o seu objetivo é claramente aumentar a concorrência pelo ativo leiloado e maximizar a receita arrecadada pelo Estado.

Portanto, não me parece razoável atribuir o ágio obtido no Bloco de Congonhas a erros de precificação do Estado ou mesmo dos dirigentes da Aena (como já li por aí). Ao contrário, talvez esteja na hora de outros setores olharem e aprenderem com o processo de leilão adotado no setor aeroportuário nacional.

“Texto publicado originalmente no UOL em 20/8/2022.”


sexta-feira, 22 de julho de 2022

O PROBLEMA NÃO SÃO AS URNAS ELETRÔNICAS, MAS SIM O NOSSO SISTEMA POLÍTICO

 

Confesso que tenho acompanhado com muito tédio a discussão proposta pelo presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) sobre a real confiabilidade das nossas urnas eletrônicas. Não que eu entenda que nossa democracia esteja totalmente segura, mas apenas vejo que o foco do problema está em outros locais e não no sistema eletrônico de votação.

Carregamos um modelo já deturpado desde a época da ditadura, que não foi corrigido pela nossa Constituição Federal (CF). Isso porque, em seu parágrafo primeiro, artigo 45, nossa “carta magna” estabelece um mínimo de 8 e máximo de 70 deputados por estado. Com isso, criou-se uma sub-representatividade de alguns estados e super representatividade de outros.

São Paulo, por exemplo, tem 21,87% da população do país e apenas 13,65% de deputados. Já Roraima, com uma população de 0,31%, tem 1,56% de representantes na Câmaras dos Deputados. Com isso, o voto de um paulista radicado em Roraima tem um peso, em termos representativos, oito vezes maior do que o voto de um roraimense que vive em São Paulo.

Há que se ter clareza que a representatividade dos estados, enquanto unidade federativa em um modelo bicameral, dá-se no Senado, não havendo, portanto, qualquer justificativa para mantermos o status quo. Mas este é só um aspecto dentro tantos outros problemas que temos criado ao longo do tempo.

Para expor meus argumentos, valho-me inicialmente de dois pressupostos econômicos. O primeiro envolve o fato de que quanto menores forem as barreiras à entrada nos mercados, maior será a concorrência, fazendo com que as empresas incumbentes se esmerem em atender melhor o consumidor (por exemplo, ofertando melhores produtos e serviços a custos mais baixos).

Já o segundo está associado à ideia de que a inexistência de assimetria informacional (ou seja, mais transparência sobre as características e preços dos produtos ofertados e sobre as próprias firmas) faz com que o consumidor realize escolhas melhores, mais adequadas aos seus desejos, induzindo as empresas a serem mais eficientes e oferecerem o que o mercado quer de fato.

No limite, a total ausência de barreiras à entrada e a transparência plena tornam os mercados mais eficientes, gerando uma concorrência mais efetiva e justa, além de permitir melhores escolhas por parte dos demandantes. E o mercado político (de decisões legislativas, regulatórias, etc.) não é muito diferente disso.

Nesse ambiente, podemos entender as leis como o produto derivado da interação entre demandantes (o conjunto da sociedade, representado pelos eleitores) e ofertantes (políticos que escrevem e aprovam as leis). E esse produto será tanto melhor quanto mais os ofertantes se esmerarem em atender aos verdadeiros anseios de seus demandantes.

Mas para que isso ocorra, devem prevalecer os dois pressupostos econômicos destacados anteriores. Assim, quanto mais informação os eleitores tiverem sobre a verdadeira capacidade e intenção dos candidatos, maior a probabilidade de realizarem boas escolhas e, consequentemente, maior a chance de o resultado legislativo ser positivo.

Na mesma linha, quanto maior for o número de candidatos disponíveis (em condições isonômicas de concorrência) nas eleições, mais cada candidato se esforçará para convencer e atender aos anseios dos eleitores, principalmente em um ambiente de transparência plena sobre sua vida pregressa e seus atos públicos e políticos.

Infelizmente esses dois pressupostos têm sido atacados de todos os lados por aqui. Por exemplo, os fundos eleitoral e partidário bilionários têm criado uma discrepância muito grande entre os grandes partidos já estabelecidos, que carregam ideias arcaicas e são guiados pelos grandes caciques, e aqueles menores e novos, que podem arejar o ambiente político com novas ideias.

É como se os políticos da velha guarda tivessem clareza que estão criando uma forte barreira à entrada no mercado político, tornando seus atos menos contestáveis a novas visões; sem falar que uma boa parte desse dinheiro é destinado a desperdícios com publicidade sem sentido, jatinhos, viagens e até mesmo com bancas de advogados para se defenderem de crimes eleitorais.

E o pior de tudo é que as reformas políticas que tramitam no Congresso caminham no sentido de elevar ainda mais as barreiras à entrada; e isso sob o pretexto de reduzir o número de partidos pequenos, para evitar os efeitos deletérios do modelo político que chamam erroneamente de “presidencialismo de coalisão”, mas que, na realidade, nada mais é do que um “toma lá dá cá”.

Entretanto, vale lembrar que “mensalões”, “petrolões” e, mais recentemente, o escárnio do caso do “Orçamento Secreto”, envolvem majoritariamente a “compra enrustida de votos” de políticos de grandes partidos, e não dos pequenos, que não têm muita força para alterar votações no Congresso.

Em outras palavras, cláusulas de barreiras, principalmente em um país como o nosso, cujas leis criminais para políticos têm sido fortemente enfraquecidas, além de não resolver os problemas de corrupção, só reforçam a situação atual e inibem a concorrência de novos políticos.

E por falar em “Orçamento Secreto”, como o próprio nome já diz, sua dinâmica de liberação de verbas dificulta que os eleitores saibam quais deputados estão manipulando recursos públicos e para quais fins. Ou seja, a ausência de informação clara tem passado longe do nosso atual Congresso, dificultando que os eleitores separem o “joio do trigo”.

Ainda neste capítulo, “menção honrosa” cabe ao chamado “quociente eleitoral”, regra criada para limitar o número de partidos, mas que permitiu que deputados com poucos votos e expressividade política sejam eleitos pegando carona nos votos de “tiriricas da vida”, sem que o eleitor previamente saiba disso no seu processo decisório.

Poderia discorrer sobre outros aspectos, mas o fato é que nosso “mercado político” e, portanto, nossa democracia, não tem funcionado de maneira eficiente, muito por conta das distorções criadas pelos nossos próprios congressistas. Mas isso de maneira alguma tem qualquer coisa a ver com nosso sistema de urnas eletrônicas.

“Texto publicado originalmente no UOL em 22/7/2022.”


sexta-feira, 15 de julho de 2022

CONCESSÃO DO MERCADÃO PODE VIRAR EXEMPLO PARA REVITALIZAÇÃO DO CENTRO DE SP

 

Há alguns meses, o Mercado Municipal de São Paulo – Mercadão, apareceu no noticiário televisivo de forma negativa, dada a atitude agressiva de alguns vendedores que procuravam enganar os consumidores. Felizmente este comportamento criminoso, que se diga de passagem não é a regra, tem sido combatido coordenadamente pelos Procons e até pela Concessionária.

Fato é que há muito mais coisas positivas acontecendo por lá, mas que têm sido deixadas de lado pela imprensa em geral. Para quem não sabe, o Mercado

Municipal é um patrimônio histórico. Projetado pelo engenheiro Felisberto Ranzini, o mesmo responsável pelo Teatro Municipal e pela Pinacoteca, foi inaugurado em 1933, para ser um entreposto comercial de atacado e varejo. Antes disso, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, serviu como depósito de munições.

Ao longo do tempo, este equipamento também se tornou um lugar de lazer para os paulistanos e um ponto turístico para quem não é da cidade. Infelizmente esse prédio histórico acabou por se deteriorar ao longo do tempo, principalmente por falta de recursos públicos. Mas a boa notícia é que, em julho de 2020, foi realizado um leilão para sua concessão à iniciativa privada.

O consórcio vencedor (Novo Mercado Municipal), que também levou o mercado da Cantareira, pagou ao todo R$ 112 milhões para exploração dos dois espaços por 25 anos (mais de 3 vezes o valor mínimo de referência). Ademais, comprometeu-se com investimentos da ordem de R$ 70 milhões entre a restauração e as reformas no prédio do Mercadão e do Mercado Kinho Yamato.

De maneira clara, logo de saída, o setor público ganhou duas vezes. Em primeiro lugar, por arrecadar recursos para o caixa da Prefeitura, que poderão ser utilizados para o bem da sociedade. Em segundo, por também economizar recursos que deveriam ser direcionados para a revitalização do equipamento público em questão.

E isso sem falar que, ao delegar a gestão do Mercadão à iniciativa privada, a Prefeitura deixa de incorrer no custo de oportunidade de ter que alocar pessoas e recursos para gerenciar os típicos problemas que envolvem a relação existente entre o administrador e os até então permissionários do local.

Mas os ganhos para o Estado e para a sociedade não se limitam a esses dois aspectos. Ao recuperar um prédio tão importante, a tendência é que haja muito muito mais movimentação na região, gerando a possibilidade de mais negócios, criação de empregos e até mesmo arrecadação de tributos.

No fundo, o Mercadão tem um potencial imenso de gerar externalidades positivas para toda a região, incentivando, inclusive, novos investimentos nas proximidades e a revitalização de uma área tão degradada ao seu redor. Quem já esteve por lá sabe que existem prédios próximos quase desabando, que são subutilizados.

O ponto aqui é entender que o bom funcionamento do Mercadão atrairá mais empresários interessados em “pegar carona” no aumento da movimentação gerado por esse espaço público. E isso não será nenhuma novidade, uma vez que em todos os lugares onde esse processo de revitalização se consolidou, os resultados foram sempre os melhores possíveis.

É como criar um jogo de “ganha-ganha” e estimular um “círculo virtuoso”, no qual empresário, setor público e a sociedade no entorno acabarão por se beneficiar das melhorias gradativamente implementadas. Mas para que isso ocorra, é fundamental que o Mercadão seja de fato viabilizado, algo que não depende apenas da iniciativa privada.

Sendo mais claro, esse espaço público tem sido afetado constantemente por problemas derivados das atividades no seu entorno (externalidades negativas) e pela falta de uma infraestrutura adequada, cuja obrigação de provimento é do Estado.

Existe hoje, por exemplo, uma feira de rua não legalizada, que vende todos os tipos de produtos, e que inviabiliza o funcionamento do Mercadão no período noturno, na medida em que dificulta o seu acesso. Com isso, a Concessionária perde a oportunidade de gerar negócios no seu interior, como levar restaurantes mais sofisticados, que dependem de funcionamento noturno.

Ademais, essa feira, como constituída, acaba por afastar potenciais clientes do Mercadão, dado que dificulta implementar um esquema de segurança pública mais crível na região, que permita o acesso seguro de potenciais clientes. Não por outra razão, são observados constantes furtos na região.

É de conhecimento público, também, que a região do Mercadão sofre constantemente com enchentes, principalmente durante o verão, algo que, além de dificultar o acesso ao prédio, acaba por provocar problemas estruturais, como o desabamento de parte do estacionamento observado no início do ano.

Fato é que hoje o Mercadão sofre pela existência de problemas derivados da omissão do Estado de todos os tipos. Desde a falta de fiscalização de atividades irregulares ao seu redor, passando pela ausência de investimentos públicos mínimos adequados em infraestrutura e chegando, até mesmo, à insuficiência de plano de segurança pública na região.

Se a Concessionária atual pagou pelo direito de prestar o serviço e deve levar adiante toda as inversões exigidas contratualmente, é natural e desejável que ela busque criar fontes de receitas para recuperar o investimento realizado. E ao fazer isso, ela gerará mais renda e mais imposto, estimulando, inclusive, que novos investimentos sejam levados para a região.

Só que para que isso ocorra, o Estado deve cumprir o seu papel, mesmo porque, como já destacado, ele também terá muito a ganhar. Se nada for feito nesse sentido, é possível que as “externalidades negativas” hoje observadas na região acabem por impedir que surjam as “externalidades positivas”, que podem ser criadas a partir do belíssimo Mercado Municipal Paulistano.

Para o bem da região e da cidade, espero que tanto Prefeitura quanto o Governo do Estado entendam que têm um papel fundamental no processo de revitalização dessa região, cujo resultado poderá, inclusive, servir de exemplo para outras áreas de São Paulo.

“Texto publicado originalmente no UOL em 15/7/2022.”


terça-feira, 5 de julho de 2022

SENADO FOI IRRESPONSÁVEL AO APROVAR MAIOR COMPRA DE VOTOS JÁ VISTA NO PAÍS

 

Na última semana, foi aprovada no Senado a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 01/2022), de autoria do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), que institui o Estado de Emergência no Brasil. A intenção foi permitir ao presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) elevar os gastos públicos em R$ 41,25 bilhões até o final do ano, acima de seu teto permitido.

Travestida de uma preocupação em minorar os efeitos ruins do aumento do preço internacional do petróleo e da guerra da Ucrânia sobre os mais pobres, essa PEC nada mais é do que uma maneira desesperada encontrada pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro de criar, de maneira enrustida, o maior programa de compra de votos jamais visto no país.

Com justificativas toscas de que o país tem obtido superávit fiscal neste ano e que existem recursos disponíveis para isso relacionados a dinheiro advindo do petróleo, na prática, esse gasto adicional, sem cortes em outras despesas possíveis (como fundos eleitorais e partidários), sepulta definitivamente o teto dos gastos, a regra de ouro e afasta regras previstas na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Já expliquei nesta coluna que esse suposto superávit observado neste ano é uma ilusão arrecadatória não sustentável e baseada no chamado imposto inflacionário e na elevação temporária de alguns preços na economia, como o dos combustíveis.

Quanto aos recursos derivados do próprio petróleo elencados pelo relator na sua exposição de motivos, esses tecnicamente deveriam ser utilizados como uma poupança do país, seja para evitar flutuações cambiais derivadas de um eventual forte crescimento futuro da exportação do petróleo, seja como compensação a gerações futuras, principalmente em tempos de “vacas magras”.

Mas essa discussão já se perdeu definitivamente em 2010, quando o Congresso criou o Fundo Social. Na realidade, o que os nossos congressistas têm reiteradamente feito é, a exemplo da previdência pública, deixado dívida, e não poupança, para as futuras gerações de brasileiros. E a proposta do relator foi apenas mais do mesmo.

Não por outra razão, o mercado já começou a precificar o que vem pela frente, com a elevação do dólar, queda da bolsa e aumento dos juros futuros. No fundo, esse movimento acabará por desancorar as expectativas, fazendo com que o Banco Central mais uma vez seja obrigado a elevar juros e ampliar o período pelo qual ele permanecerá alto.

A expectativa, com isso, é que a trajetória das contas públicas tenda a piorar substancialmente a partir do próximo ano, seja por um processo de redução da arrecadação futura, com o agravamento da crise, seja pelo aumento dos gastos públicos, associados à pressão por aumento de salários do funcionalismo e à elevação de juros, por exemplo.

E isso sem falar que, se entrarmos em uma nova recessão global, a tendência é que o câmbio deprecie ainda mais. Fato é que se não controlarmos rapidamente o montante e a qualidade dos gastos públicos, o país continuará a ter uma inflação elevada, prejudicando exatamente os mais pobres que, cinicamente, nossos políticos dizem querer proteger neste momento.

Infelizmente o claro sinal que foi dado com a PEC do Estado Emergencial é o de que o país não tem qualquer compromisso com a responsabilidade fiscal, e isso foi mostrado por 72 Senadores de partidos de todas as vertentes políticas. Apenas o Senador José Serra (PSDB-SP) teve a coragem de votar contra essa insanidade.

Politicamente é fácil entender a posição do Centrão neste momento, que está atualmente no governo e que quer fazer de tudo para que o atual presidente se reeleja. Ou seja, apenas Centrão sendo Centrão.

Também é fácil entender a posição do PT e dos demais partidos da chamada “oposição de esquerda”, na medida em que essa PEC abriu um forte precedente para que o próximo presidente faça exatamente o mesmo. Aliás, se isso tivesse sido feito durante o governo Dilma, provavelmente ela não teria sofrido o impeachment, dado que as bases legais não mais existiriam para tanto.

Já a posição de outros partidos, do qual faz parte, por exemplo, a candidata Simone Tebet (MDB-MS), que votou a favor da PEC, implicitamente indica um mix de covardia com puro populismo irresponsável. Mas a pior posição de todas foi a do PSDB, criador da LRF, que, com essa votação, jogou de vez seu histórico de compromisso com a responsabilidade fiscal na lama.

Todos esses políticos podem até argumentar que o que se votou agora foi uma medida temporária, cujo gasto não se estenderá ao longo do tempo. Só que uma grande parte dessas medidas não deve ser temporária, uma vez que qualquer transferência de renda criada nunca ou quase nunca é cortada no futuro. No fundo seria como se tentar “’colocar a pasta de dente de volta no tubo”.

Mas pior do que isso é realmente o fato do precedente criado e da perda de credibilidade do país. Sempre se poderá argumentar que existe uma razão emergencial para se elevar os gastos, sem se preocupar em avaliar a possibilidade de realocação dos gastos já existentes.

E se lembrarmos das declarações do candidato que está na frente nas pesquisas eleitorais, é bem provável (para não dizer quase certo), que, caso seja eleito, apresente o mesmo argumento nos próximos anos, principalmente porque terá que lidar com uma crise econômica gravíssima.

 O grande problema é que esse caminho, além de só agravar a crise econômica, poderá nos levar ainda a uma enorme crise social e institucional.

“Texto publicado originalmente no UOL em 5/7/2022.”


quinta-feira, 23 de junho de 2022

ESTRATÉGIA DE BOLSONARO PARA ATACAR A PETROBRAS É COVARDE E BURRA

 

Aparentemente a temporada de ataque à Petrobras retornou com mais força do final da última semana para cá, quando a empresa elevou os preços para seguir a política de paridade de preços com o mercado internacional, que, diga-se de passagem, é a decisão correta. Já expliquei as razões em texto anterior nesta coluna.

E neste momento, quem deu o pontapé inicial para as agressões foi o próprio presidente Jair Bolsonaro, adotando uma estratégia covarde e burra. Covarde porque ele, como mandatário maior da nação, é quem indica o presidente da empresa e parte do Conselho.

Assim, indicar alguém para depois queimá-lo em praça pública, como virou a regra, mesmo sabendo que o próprio modelo de governança limita a atuação do presidente da Petrobras, não parece algo que se coadune com o que se exige do cargo de um Presidente da República.

Mas pior ainda foi a ideia do próprio Bolsonaro de levantar a possibilidade de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os preços dos combustíveis. Em Brasília, há uma máxima de que “todos sempre sabem como começa uma CPI, mas nunca como ela termina”.

E para quem pretende se reeleger, a ideia de levar uma CPI à frente para investigar uma empresa no próprio governo não parece muito inteligente. Ao contrário, sua abertura é música para muitos congressistas fisiológicos e populistas, que veem a possibilidade de aparecer na mídia, ou, no caso da oposição, enxergam uma forma de desgastar o governo de plantão.

E no quesito populismo truculento, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) foi mais uma vez “hors-concours”, começando por um texto publicado na Folha de São Paulo intitulado “Chegou a hora de tirar a máscara da Petrobras”.

Esse artigo, carregado de improperes e impropriedades técnicas, só reforça o argumento de que as empresas públicas têm que se manter longe e blindadas dos braços dos nossos políticos ou, melhor ainda, serem privatizadas de vez.

Mas pior ainda foi seu comportamento agressivo em entrevistas e nas redes sociais, com o discurso de desmontar a Lei das Estatais, que tem sido uma das garantias de que não haja interferência política na Petrobras e controle de preços dos combustíveis, e de levar à frente a abertura da CPI propalada por Bolsonaro, para investigar politicamente uma questão eminentemente técnica.

O problema é que o instrumento democrático e legítimo da CPI há muito virou no Brasil mais uma forma de criar palanque político ou de chantagear covardemente funcionários públicos técnicos e sérios, para que se submetam aos desmandos políticos de toda ordem, que quase sempre representam interesses particulares bastante questionáveis.

Não bastasse esse ambiente político, o Ministro André Mendonça do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou recentemente que a Petrobras informe, no prazo de cinco dias, quais os critérios adotados para a política de preços estabelecida nos últimos 60 meses pela empresa; como se definição de preços por parte de qualquer empresa envolvesse alguma questão constitucional.

É de conhecimento público que nosso Supremo tem inovado em suas decisões e caminhado para uma linha um tanto quanto “heterodoxa”. Mas se for pelo rumo de definir o que seria uma política de preços justa ou razoável, estaremos sinalizando para empresas e investidores que o Brasil definitivamente não é um país confiável e as que as regras de mercado não valem por aqui.

Para completar o cenário desalentador, Lula, o candidato que está na frente nas pesquisas eleitorais, tem falado abertamente que Bolsonaro deveria baixar os preços dos combustíveis e que fará isso “quando voltar a ser presidente”, além de promover a reestatização completa da Petrobras.

Talvez o nobre ex-presidente se esqueça que, para além dos efeitos da Lava-Jato e das decisões descabidas de investimentos (inclusive em refinaria para agradar seu então colega presidente da Venezuela, Hugo Chaves), o que levou a empresa para o buraco no passado foi exatamente a política de controle de preços dos combustíveis da então presidente também petista Dilma Rousseff.  

Mas, pelo andar da carruagem, Lula não precisará fazer absolutamente nada caso vença as eleições e assuma a presidência em janeiro, posto que o circo político de horrores de Brasília já terá feito todo o trabalho de destruir a governança da empresa e submetê-la aos desmandos discricionários do governante de plantão.

O grande problema do caminho político que estamos trilhando no mercado de combustíveis é que todos nós pagaremos caro no futuro, com menos investimentos e pouca competição, o que implicará preços mais elevados e até mesmo escassez do produto. E para quem não acredita, basta ver o que tem ocorrido na Venezuela e na própria Argentina.

Infelizmente este assunto é de difícil entendimento para a maioria dos “mortais”, o que faz com que o populismo e o fisiologismo de políticos como os aqui citados ganhem força. Em realidade, é muito mais fácil acreditar que basta controlar preços que todos os problemas de carestia se resolverão, em uma estratégia típica de autoengano.

E neste contexto, o incentivo para os nossos políticos é o de manter esse discurso fácil, mas mentiroso, uma vez que é ele que garante voto e a perpetuação desses mesmos indivíduos no poder. Sem que o eleitor se torne mais crítico e resolva expurgar essa turma da vida pública, há pouca esperança de que o país melhore de maneira consistente.

“Texto publicado originalmente no UOL em 23/6/2022.”


quinta-feira, 16 de junho de 2022

DECISÃO DO STJ ESTÁ ULTRAPASSADA; LISTA DA ANS É QUE DEVERIA MELHORAR

 

Em coautoria com Cláudio Galvão de Castro Junior, médico hematologista com área de atuação em transplante de medula óssea.

Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) finalmente decidiu se o rol de procedimentos descritos nos planos de saúde seria exemplificativo ou taxativo. De maneira geral, o que se percebeu foi uma tentativa do Tribunal de conciliar a necessidade de se preservar a vida das pessoas com a saúde financeira das operadoras de planos de saúde. Mas nos parece que essa discussão é só a base do problema.

É fato que os avanços constantes da medicina têm trazido benefícios incontestáveis para a saúde de todos nós. Há intervenções, como as vacinas, com baixíssimo custo por habitante e que geram benefícios gigantes. Mas há também tratamentos oncológicos e para doenças raras que salvam milhares de vidas, mas que são muito mais caros.

Conhecer quais são os tratamentos que oferecem o benefício desejado e dentro de um valor aceitável é uma discussão presente em todo o mundo. Um bom exemplo de sistema de saúde pública é o National Health Service (NHS) ou Serviço Nacional de Saúde britânico. Esse sistema possui um Instituto chamado NICE (The National Institute for Health and Care Excellence), numa tradução livre, Agência Nacional para Saúde e Cuidados de Excelência.

O NICE faz avaliações recomendando o que deve ou não ser incorporado ao sistema de saúde, considerando variáveis como custo, gravidade e frequência da doença, além de possíveis tratamentos alternativos. Essas avaliações impactam diretamente na assistência prestada pelo NHS. Tal é a credibilidade do NICE que muitas indústrias farmacêuticas comemoram a aprovação dos seus produtos por esse Instituto.

No Brasil, a Agência Nacional de Saúde (ANS) foi criada com a finalidade institucional de promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde. Ela regula as operadoras setoriais, inclusive na sua relação com os consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.

Assim, há todo o sentido que a ANS estabeleça um Rol de procedimentos que devem ser oferecidos aos usuários dos planos de saúde. Garantir que esses procedimentos sejam custo-efetivos, levando à melhor assistência possível aos usuários e garantindo a solvência das operadoras, é algo de interesse público.

Tratamentos inadequados prejudicam os consumidores e as próprias operadoras, pois podem custar caro demais, ter desfechos clínicos inadequados, ou ambos. Infelizmente, o que se percebe é que o Rol de procedimentos da ANS (iniciativa louvável e necessária) tem apresentado diversos problemas desde sua criação.

O primeiro deles é a morosidade na inclusão de novos procedimentos pois, por regras arbitrárias, este rol só pode ser alterado com intervalos de tempo que chegavam a dois anos. Também há regras estranhas, que envolvem a incorporação automática de drogas endovenosas, mas que exigem a incorporação em separado de drogas por via oral.

Dada a velocidade dos avanços, muitas vezes um tratamento melhor e até mais barato é recusado pela operadora, por não constar do Rol vigente; e isso causa atrasos, judicializações, inevitável aumento de custo e piora dos resultados dos pacientes.

A ANS e as operadoras se defendem dizendo que o Rol será aperfeiçoado, porém, essa é uma conversa que se ouve há anos, sem que haja uma melhoria perceptível. Infelizmente, as sociedades médicas de especialidades só são chamadas a opinar depois que os relatórios que ensejam o novo Rol definido ficam prontos.

Diferente do NICE, os pareceres da ANS muitas vezes não são escritos por especialistas na área e reverter o seu conteúdo em uma audiência pública torna-se uma tarefa árdua, gerando posteriormente todo tipo de problema. Exames diagnósticos, por exemplo, são problemáticos, particularmente em se tratando daqueles pouco solicitados, mas que nem por isso são caros.

Este também é o caso de dosagem de nível sérico de bussulfano e voriconazol, usados em pacientes transplantados, que acabam por não serem pagos. As operadoras e a ANS alegam que basta pedir a incorporação, porém, o processo é árduo, consome tempo e verbas.

No fundo, a discussão sobre o Rol ser taxativo ou não é algo ultrapassado. Há muito tempo deveríamos estar discutindo como melhorá-lo, por meio do aperfeiçoamento dos processos de análises, incorporações e exclusões de procedimentos.

Ao simplesmente assumirmos que o Rol vigente vai regular o que pode ou não ser fornecido aos usuários de planos de saúde, sem considerar que ele deveria ser entendido como um processo dinâmico a ser aperfeiçoado, estaremos mantendo uma sobrecarga maior de judicialização, com tratamentos inadequados e de aumento de custos.

A discussão precisa ser muito mais profunda. Por um lado, revogar todo e qualquer Rol, obrigando as operadoras a cobrirem tudo, implicará um aumento de custos insano, inviabilizando, no limite, a saúde suplementar. Por outro, deixar as pessoas completamente desassistidas também não é aceitável.

É preciso ter um olhar correto, construindo um Rol técnico, coerente, ético e custo-efetivo, muito distante do que temos hoje. Ao se persistir a discussão nos moldes atuais, o prejuízo será de todos; operadoras, usuários e do próprio SUS, que terá que abarcar mais milhões de pessoas excluídas da saúde suplementar.

“Texto publicado originalmente no UOL em 16/6/2022.”


quinta-feira, 2 de junho de 2022

INVESTIGAÇÃO DA MASTERCARD A PEDIDO DA ABRAS PODE PREJUDICAR CONSUMIDOR

 

No último dia 19 de maio, o Ministério da Justiça (MJ) divulgou que investigaria a Mastercard por aumento abusivo de taxa na venda com cartões. Essa decisão foi tomada a partir de denúncia apresentada pela Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS).

Como justificativa, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) do MJ alega que pode ter havido uma possível elevação da taxa de intercâmbio cobrada sobre o uso de cartões de crédito e débito utilizados para recebimentos nos supermercados, com impacto sobre os preços praticados ao consumidor, inclusive com efeito inflacionário.

Ademais, a Senacon sugere que, apesar de ter alegado a necessidade de reajuste das taxas, a Mastercard não teria apresentado planilha de custos que sustentasse o eventual reposicionamento de preços.

Tenho sido muito cético sobre medidas que envolvam qualquer intervenção em preços nesse mercado porque entendo que esse não é o instrumento correto para torná-lo mais eficiente e gerar efeitos positivos para os consumidores e para a sociedade como um todo. E no caso em questão, acho qualquer intervenção menos produtiva ainda.

Em primeiro lugar, porque esse mercado (de meios de pagamento) já é regulado pelo Banco Central (Bacen) e foco de vários casos sendo analisados no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Em realidade, qualquer efeito percebido pelo consumidor depende muito mais da atuação correta nessas duas esferas do que propriamente na área da Defesa do Consumidor.

Em segundo, porque estamos tratando de um mercado com características de dois lados, no qual os participantes são empresas que facilitam a interação entre diferentes agentes econômicos e constroem seu processo de maximização de lucro, definindo preços conjuntamente para os dois lados do mercado. E nesses casos, a intervenção estatal pode, muitas vezes, ser desastrosa e gerar efeitos contrários aos pretendidos. 

No caso específico do mercado de cartões, as administradoras (bandeiras, como Mastercard e Visa) facilitam transações financeiras entre portadores de cartões (consumidores) e estabelecimentos comerciais, definindo taxas (fees) a serem pagas por bancos emissores e empresas credenciadoras e a tarifa de intercâmbio (TIC), que é cobrada pelos bancos emissores.

É apenas sobre essa última (TIC) que estranhamente a ABRAS se insurge. De toda forma, devemos lembrar que os bancos emissores também definem anuidades e juros para os portadores de cartões. E sendo assim, em tese, a perda de receita derivada da redução artificial da TIC poderá ser compensada por elevações dos juros e anuidades pagas pelo portador do cartão, que, coincidentemente, é o consumidor que o MJ pretende proteger.

Teríamos, portanto, um efeito denominado de “colchão d´água”, posto que a pressão feita para baixar preços em um lado do mercado (sobre a tarifa de intercâmbio) faria com que os bancos elevassem os preços do outro lado (anuidades e juros). E o pior é que, com isso, poderia haver ainda queda do uso de cartões, reduzindo a quantidade de transações a crédito na economia.

Há que se perceber também que mesmo uma elevação de custo associada a um eventual aumento da TIC, como a alardeada pela Abras, não implica repasse automático para os preços finais. Em realidade, o efeito final depende da avaliação conjunta da capacidade de reação dos consumidores (elasticidade preço da demanda) e dos supermercados (elasticidade preço da oferta).

E o fato é que quanto mais competitivo for o mercado (e o setor supermercadista afirma que há forte competição nesse segmento), menor será o repasse para preços finais, o que torna essa discussão muito mais uma briga por obtenção de margem ao longo da cadeia de serviços do que propriamente uma questão que envolve direta ou indiretamente o consumidor.

Em verdade, o que se nota é que, se por um lado, não há nada que indique que a elevação da tarifa de intercâmbio será repassada para preços dos produtos vendidos por supermercados, por outro, a interferência sobre sua definição poderá implicar a compensação dessa receita via elevação de juros e anuidades para os consumidores portadores de cartões.

Neste contexto, levar essa discussão para a requisição de planilhas de custos no âmbito do MJ parece algo um tanto quanto sui generis, fazendo lembrar a extinta Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), cujo objetivo era controlar preços, algo que não se coaduna com um governo que se diz liberal.

E isso se torna ainda mais verdade quando lembramos que variações de preços podem ser resultados de vários fatores relacionados ao lado da demanda e oferta de mercado, conforme apregoa o próprio “Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços” do MJ, e que são de difícil análise e conclusão apenas olhando os dados de planilhas de custos.

Sem falar que algumas estratégias de precificação podem ser de difícil compreensão, mas eficientes, inclusive sob o ponto de vista do consumidor; principalmente em mercados de dois lados, cujo processo de maximização de lucro é obtido por meio da definição conjunta dos preços em ambos os lados.

Não por outra razão, os olhos das autoridades de concorrência no mundo todo, por exemplo, estão voltados para “condutas não preço”, como contratos exclusivos e venda casada de produtos, que visam limitar a concorrência ou fechar o mercado para os rivais, e que, aí sim, podem gerar efeitos indiretos sobre os consumidores, na medida em que restrinjam a concorrência em segmentos específicos.

“Texto publicado originalmente no UOL em 2/6/2022.”


quinta-feira, 26 de maio de 2022

CAPITALIZAÇÃO DA ELETROBRAS MOSTRA COMO SERÁ DIFÍCIL PRIVATIZAR A PETROBRAS

 

Na última semana, o Tribunal de Contas da União (TCU) finalmente aprovou o processo de capitalização da Eletrobras, em que pese as constantes tentativas do Ministro Vital do Rêgo de atrasar a votação.

Segundo ele, haveria seis ilegalidades que implicariam reduzir o valor mínimo de referência pelo qual a empresa seria leiloada. Na realidade, poucas vezes vi no TCU uma proposta de discussão tão inócua e sem sentido. No fundo, o valor efetivo pelo qual a participação da empresa será vendida dependerá do grau de sua atratividade aos olhos dos investidores e do nível de concorrência vigente no processo de licitação.

Só que em nenhum momento essas questões foram tratadas no TCU. Se realmente o ministro estivesse preocupado com o valor arrecadado pelo Estado brasileiro, ou mesmo com o consumidor, melhor faria revisar, por exemplo, todos os penduricalhos aprovados no bojo da lei que definiu a capitalização da Eletrobras, e que tantas distorções geraram no mercado e no próprio valor percebido da empresa.

Cheguei a tratar disso em junho de 2021 e julho do mesmo ano. De maneira resumida, os problemas vão desde a obrigação de contratação prévia de geração termelétrica movida a gás natural até a escolha do modelo “corporation”, que limita o direito a voto de cada acionista ou grupo de acionistas a apenas 10% do total de ações.

Tampouco observei no voto do Ministro Vital do Rêgo qualquer discussão sobre qual o melhor modelo de leilão a ser implementado para gerar concorrência pela Eletrobras ou eventuais limitações a serem previamente incorporadas no edital que pudessem evitar a elevação do grau de concentração no segmento de geração de energia.

No fundo, o voto do Ministro disfarçou-se de técnico, quando, na realidade, carregou um forte componente ideológico associado à sua origem política. E note-se que a capitalização da Eletrobras é um movimento bastante tímido, que tem como verdadeiro mérito tirar o Estado brasileiro da gestão da empresa, de modo a criar uma governança um pouco mais eficiente e economizar recursos públicos.

Sob o ponto de vista econômico, o ideal seria implementar uma verdadeira privatização, com a transferência total das ações para o setor privado, sem qualquer tipo de interferência do governo nas decisões da empresa, inclusive em um eventual processo de transferência de titularidade. Mas reconheço que politicamente essa não é uma decisão simples.

Afinal, durante anos o país foi bombardeado com slogans falaciosos de que as empresas públicas são um patrimônio do povo brasileiro, que podem dar lucro, ou que existem setores estratégicos que deveriam ser mantidos nas mãos do Estado. Só que cada um desses argumentos não resiste a uma análise econômica ou prática minimamente criteriosa.

Os supostos “patrimônios brasileiros” têm sido entregues a políticos de todas as colorações políticas ao longo do tempo e se transformado em fontes inesgotáveis de ineficiência e corrupção. Vide casos como Mensalão, Petrolão, Eletrolão, dentre outros.

E isso sem falar dos casos de corporações de funcionários de algumas dessas empresas, que se apropriam dos resultados por elas obtidos, por meio da criação de todo tipo de “benefício” a ser dividido entre eles.

O argumento de que algumas empresas dão lucros que são distribuídos para o Estado é o mais “charmoso” de todos, mas esconde uma série de equívocos. Em primeiro lugar, a maior parte das empresas estatais não apresenta lucro contábil e muito menos econômico. Ao contrário, se considerarmos o capital investido, o resultado tende a ser bastante ruim.

E mesmo aquelas que apresentam algum lucro, ciclicamente são utilizadas como instrumento populista de política macroeconômica de controle de preços. O caso da Petrobras no governo Dilma é só um dos vários exemplos. De toda forma, as que apresentam lucros periódicos são, na maioria das vezes, aquelas caracterizadas como monopólios ou quase monopólios. E nesses casos, os gestores precisam ser extremamente criativos para gerarem prejuízos.

Finalmente, a afirmação de que alguns setores são estratégicos (o de energia, por exemplo), ao contrário de justificar a existência de empresas públicas, só indica que o arcabouço regulatório deve ser bem desenhado e administrado de forma totalmente isolada do universo político. Em outras palavras, são os incentivos criados que definem os investimentos realizados no setor.

Só assim conseguiremos gerar segurança jurídica de maneira a atrair investimentos privados, cujos recursos estão disponíveis pelo mundo todo, e que, inclusive, implicam menor custo de oportunidade social, na medida em que os recursos públicos passam a ser liberados para áreas mais meritórias (como saúde, educação, segurança pública e para políticas assistenciais).

Infelizmente, a forma como o processo de capitalização da Eletrobras tem sido conduzido e todos os jabutis incorporados na lei que abriu essa possibilidade só mostram que não há real intenção política de se modificar o status quo vigente. Ao contrário, tudo indica que o atual governo ainda enfrentará uma série de barreiras para dar um pequeno passo de abrir mão do controle da empresa.

E se isso está ocorrendo com a Eletrobras, que perdeu substancialmente sua importância ao longo do tempo, pode-se imaginar que tipo de discussão envolverá a suposta proposta de privatização da Petrobras; uma empresa com participação em vários segmentos dentro do setor petrolífero, ainda mais em um contexto de preço internacional do petróleo nas alturas.

“Texto publicado originalmente no UOL em 26/5/2022.”

sexta-feira, 29 de abril de 2022

A CONTA DO ‘DESPACHO GRÁTIS’ DAS BAGAGENS AÉREAS SERÁ PAGA POR TODOS NÓS


Na última terça-feira, dia 26, a Câmara dos Deputados aprovou a Medida Provisória (MP 1089/21) que reformula a legislação sobre aviação civil no Brasil. Apesar de conter alguns aspectos positivos no caminho de reduzir a regulamentação excessiva no setor, essa MP traz também um dispositivo que vai na contramão da lógica econômica e da prática internacional.

Refiro-me, mais precisamente, à emenda da deputada Perpétua Almeida (PC do B/AC), que inclui no Código de Defesa do Consumidor dispositivo proibindo as companhias aéreas de cobrarem qualquer tipo de taxa, em voos nacionais, pelo despacho de bagagens de até 23 kg, e em voos internacionais, pelo despacho de bagagens de até 30 kg.

Vale lembrar que a possibilidade de cobrar em separado por bagagem despachada é algo recente no Brasil, apesar de ser comum há muito tempo na grande maioria dos países. Mais precisamente, essa decisão foi tomada por aqui em 2019. Naquela oportunidade, cheguei a escrever sobre o assunto.

Não tenho como afirmar que a proposta da deputada do PC do B, que foi aprovada por vários deputados, carrega um “Q” de populismo barato ou é apenas fruto de uma compreensão totalmente equivocada sobre economia e, particularmente, sobre o setor.

Mas o fato é que essa decisão, ao invés de reduzir os preços para os consumidores, conforme sugere a nobre deputada, certamente elevará, na média, o preço das passagens aéreas para o conjunto de passageiros. No fundo, é mais uma decisão do tipo “me engana que eu gosto”. Explico o porquê.

Há pessoas que não viajam com bagagem despachada e outras que estão dispostas a viajar sem despachar, caso tenham que pagar por esse serviço. No fundo, o modelo de precificação das companhias aéreas procura captar esse fato e, por óbvio, maximizar o lucro a partir disso.

Ao dividir o valor pago em dois - transporte de passageiros e transporte de bagagem – as empresas aéreas dão a opção para que alguns passageiros paguem menos do que outros e “incentivam” as pessoas a transportarem o estritamente necessário em suas viagens.

Note-se que para aqueles que querem transportar mais bagagem, há sempre a possibilidade de se adquirir esse “direito”, inclusive com malas adicionais. Vale lembrar que o transporte de bagagem implica custo para a empresa. Mais peso exige a utilização de mais combustível.

No mínimo a utilização de mais espaço no porão do avião implica um custo de oportunidade para as empresas, posto que deixarão de transportar mais carga e rentabilizar seu voo de outra forma que não o transporte de passageiro. E este ponto é central, uma vez que acabarão por compensar esse custo adicional cobrando mais das passagens aéreas.

Nesse sentido, o que a proibição de cobrança por despacho de bagagem faz é criar um modelo de “venda casada” no setor aéreo, obrigando as empresas a cobrarem pela soma dos dois serviços (transporte de passageiro mais bagagem).

Por óbvio, como não existe almoço grátis, elas reposicionarão seu nível de preço para cima para todos os passageiros, mesmo porque os preços são livres neste mercado (como, de fato, deveriam ser).

No fundo, o que a proposta aprovada na Câmara dos Deputados faz é criar um subsídio cruzado entre passageiros, sendo que mesmo aqueles que estariam dispostos a abrir mão de despachar bagagens sejam obrigados a pagar pelo despacho dos demais passageiros.

Em outras palavras, a nova diretiva, ao contrário do que acontece no resto do mundo, criará um modelo que implicará perda de eficiência, associada à impossibilidade de discriminar preços entre passageiros, além de reduzir a possibilidade de rentabilizar o voo por meio de transporte de carga.

Fato é que essa discussão parece ter sido contaminada pelas elevações de preços no setor, que nada têm a ver com o modelo de precificação em duas partes (passageiro e bagagem). Conforme tenho insistido nesta coluna, os preços em mercados potencialmente competitivos flutuam de acordo com as movimentações de oferta e demanda.

E no caso do setor aéreo, esses dois vetores têm caminhado no sentido de pressionarem os preços para cima. Pelo lado da oferta, os constantes aumentos dos preços dos combustíveis, a instabilidade do dólar e a própria inflação têm pressionado os custos das empresas; sem falar da restrição de oferta de voos que ainda se faz sentir, mesmo com o fim da pandemia.

Já pelo lado da demanda, o que se observa é uma forte retomada da procura por viagens aéreas pelos brasileiros. Em fevereiro, por exemplo, a demanda de passageiros e a oferta de voos indicaram crescimento, respectivamente, de 367% e 127%. Não por outra razão os preços têm subido substancialmente nos últimos meses.

Neste cenário, só resta esperar que o Senado tenha mais discernimento do que a Câmara e seja capaz de analisar a questão da cobrança do despacho de bagagem de maneira cuidadosa, separando o joio (modelo de cobrança em duas partes no transporte aéreo) do trigo (flutuações do nível de preços associadas a variáveis de oferta e demanda). 

“Texto publicado originalmente no UOL em 29/4/2022.”