sexta-feira, 24 de maio de 2019

A economia política do tabelamento dos fretes


Recentemente o governo brasileiro anunciou uma série de medidas para contemplar as demandas dos caminhoneiros. Algumas na direção correta, que envolvem melhoria de infraestrutura e segurança. Outras paliativas e de pouca efetividade, como o cartão do caminhoneiro e o fornecimento de uma linha específica de financiamento do BNDES. Mas a pior delas é a que envolve colocar em prática uma tabela de fretes na prestação deste serviço. 

A razão desta insistência pode ser entendida a partir de ensinamentos econômicos construída ao longo dos últimos cinquenta anos. Particularmente, um conjunto de artigos que inauguraram o que se denomina Teoria da Regulação Econômica, publicados por Stigler[1], Posner[2]e Peltzman[3]no início da década de 70, nos auxilia a entender a economia política do quanto vivemos hoje pelo país.

Os políticos, como qualquer “homus economicus”, são motivados pela maximização de seus objetivos, no caso a obtenção e manutenção do poder. Isto implica assumir implicitamente que grupos de interesses podem influenciar os resultados dos processos legislativos e regulatórios ao fornecer apoio a esses mesmos políticos, seja via financiamento de campanha ou de voto. Assim, o poder decisório e coercitivo do Estado pode ser utilizado para dar benefícios valiosos a determinados grupos, o que faz com que a regulação possa ser entendida como um produto negociado no mercado político, e cuja alocação é governada por leis de oferta e demanda.

Para um melhor compreender a questão, devemos entender os caminhoneiros como parte do lado da demanda neste mercado e aqueles que definem leis e normas (políticos) como os ofertantes da política pública. 

É fato que o objetivo dos caminhoneiros é obter uma garantia de renda que consideram “adequada”. Para tanto, poderiam cogitar atuar coordenadamente elevando preços. Entretanto, esta decisão teria, no mínimo, o inconveniente de gerar um custo de transação muito elevado. Isto porque além do custo ex antede acertar os termos da coordenação (valor da tabela, por exemplo), haveria ainda que se incorrer também em custos ex postdo monitoramento dos termos pactuados; fato não trivial, considerando a quantidade e dispersão da oferta de caminhoneiros pelo país. Note-se que esta alternativa se mostra ainda mais problemática quando lembramos que acordos de preços no país (cartéis) são considerados infração tanto na esfera administrativa quanto penal.

Não obstante, dado que o mercado de transporte de carga é por natureza competitivo, um acordo em preços devidamente efetivado elevaria a margem de seus participantes, garantindo um benefício extra bastante atrativo para os envolvidos (caminhoneiros) em detrimento do resto da sociedade. Nesta linha, o foco desse grupo pode passar a ser então a obtenção de uma “regulação” com os mesmos efeitos de um cartel, qual seja, a definição de preços mínimos, nos moldes descritos por Stigler.[4]Este movimento, tem dupla implicação. A primeira é que criação de regras, inclusive com normas punitivas para seu descumprimento por parte do Estado, resolve o problema da coordenação ex antee reforça o cumprimento ex postaqui já destacado. A segunda vantagem está relacionada ao fato de que a “regulação” requer uma intervenção no processo político e no domínio econômico, de maneira a criar normas que se contraponham àquelas já vigentes. Mais especificamente, a “regulação” pode ser entendida como uma forma de criar uma espécie de imunidade antitruste e um salvo conduto para uma atuação contrária ao interesse da sociedade. 

E é exatamente nesta linha que se dá o movimento dos caminhoneiros. Como uma forma de obter ganhos extraordinários em detrimento do resto da sociedade. Vale lembrar que o inciso IV do artigo 170 da Constituição Federal e a Lei 12.529/2011 são claríssimos em entender como princípio basilar da ordem econômica e do interesse público a livre concorrência.

A forte mobilização da categoria nos mostrou ainda que a busca pela regulação pode também ser entendida a partir de um mixde dois movimentos apontados por Posner. O primeiro, de caráter mais “democrático”, enfatiza a relevância do número de eleitores que podem se beneficiar da regulação e de sua capacidade de influenciar os demais eleitores. Já o segundo, de caráter coercitivo, está baseado em ameaças críveis de retaliação violenta, caso a sociedade não lhes conceda tratamento mais favorável. Um exemplo clássico desta segunda postura são as ameaças e boicotes.

Note-se que foram esses dois movimentos que pressionaram fortemente os ofertantes da regulação, mais precisamente os políticos. O medo de perda de apoio e de votos nos fez assistir discursos inflamados totalmente desconectados do real interesse público, além de observar a adoção de medidas equivocadas dentro do poder executivo, inclusive na agência reguladora setorial, e no próprio legislativo brasileiro. E isso ocorreu a tal nível que outros possíveis players, pelo lado da demanda (indústria e agricultura), não tiveram força suficiente para se contrapor à pressão dos caminhoneiros. Em última instância, o que tem pesado neste jogo é o voto ofertado pelos caminhoneiros e o impacto sobre o nível de aprovação do governo de plantão.

Não por outra razão, durante o governo Temer assistimos ao Chefe da Casa Civil da época e à maioria do Congresso atropelarem a Constituição Federal e a Lei de Defesa da Concorrência para garantirem o quanto solicitado pelos caminhoneiros. Em que pese todos os trabalhos técnicos apresentados para indicar o erro que seria o tabelamento da época, a decisão foi tomada baseada na expectativa de votos para esses políticos.

Infelizmente parece que a lição não foi aprendida. O governo atual, cujo presidente durante a campanha aproveitou-se deste movimento, já se mostrou também entregue a este mesmo grupo. O sinal foi dado em janeiro, quando dois excelentes técnicos da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (Seae) foram exonerados, em circunstâncias nada transparentes, de acordo com notícias dos jornais da época. Isto porque encaminharam ao CADE e ao STF documento produzido por aquela Secretaria apontando que os caminhoneiros abusaram “do direito de greve, conspiraram, de forma anticompetitiva, para coagir autoridades públicas à edição de legislação que lhes garanta benefícios econômicos, em detrimento do bem-estar social”.

Este aparente medo do governo atual ficou ainda mais transparente na exposição recente dos Ministros da Casa Civil e da Infraestrutura, que trataram os caminhoneiros como “amigos do presidente”; e este fato foi reforçado pela divulgação de um WhatsApp com a voz de Onix Loenzoni, mostrando o nível de influência e de capacidade de intervenção deste grupo sobre a política de preços da Petrobrás.

No final do dia, o que observamos é que neste mercado político os demandantes de regulação (caminhoneiros) estão conseguindo seus objetivos dos ofertantes (políticos). Sendo isso verdade, seria ao menos honesto que este governo estabelecesse formalmente uma isenção antitruste de direito (e não apenas de fato) e explicasse claramente para a sociedade que todos pagaremos esta conta por meio de maiores preços e menos empregos em outros setores (assunto de artigo futuro...).


[1]STIGLER, J.S. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science. Vol. 2, No. 1 (Spring, 1971), pp. 3-21.
[2]POSNER. R.A. Theories of Economic Regulation. Bell Journal of Economics, 1974, v5(2), 335-358.
[3]PELTZMAN, S. The Economic Theory of Regulation after a Decade of Deregulation. Brookings Papers: Microeconomics 1989. 
[4]Stigler sugere ainda em sua obra outras formas pelas quais políticos atendem a grupos de interesse, como, por exemplo: a limitação de entrada de novas empresas no mercado; o fornecimento de subsídios diretos a determinadas indústrias; e a elevação de tarifas de importação. Certamente o leitor deste texto reconhecerá este movimento em outros setores no caso brasileiro.