Em coautoria com Cláudio Galvão de Castro
Junior, médico hematologista com área de atuação em transplante de medula
óssea.
Na última semana, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) finalmente decidiu se o rol de procedimentos descritos nos
planos de saúde seria exemplificativo ou taxativo. De maneira geral, o que se percebeu foi
uma tentativa do Tribunal de conciliar a necessidade de se preservar a vida das
pessoas com a saúde financeira das operadoras de planos de saúde. Mas nos
parece que essa discussão é só a base do problema.
É fato que os avanços constantes da
medicina têm trazido benefícios incontestáveis para a saúde de todos nós. Há
intervenções, como as vacinas, com baixíssimo custo por habitante e que geram
benefícios gigantes. Mas há também tratamentos oncológicos e para doenças raras
que salvam milhares de vidas, mas que são muito mais caros.
Conhecer quais são os tratamentos que
oferecem o benefício desejado e dentro de um valor aceitável é uma discussão
presente em todo o mundo. Um bom exemplo de sistema de saúde pública é o
National Health Service (NHS) ou Serviço Nacional de Saúde britânico. Esse
sistema possui um Instituto chamado NICE (The National Institute for Health and
Care Excellence), numa tradução livre, Agência Nacional para Saúde e Cuidados
de Excelência.
O NICE faz avaliações recomendando o que
deve ou não ser incorporado ao sistema de saúde, considerando variáveis como
custo, gravidade e frequência da doença, além de possíveis tratamentos
alternativos. Essas avaliações impactam diretamente na assistência prestada
pelo NHS. Tal é a credibilidade do NICE que muitas indústrias farmacêuticas
comemoram a aprovação dos seus produtos por esse Instituto.
No Brasil, a Agência Nacional de Saúde
(ANS) foi criada com a finalidade institucional de promover a defesa do
interesse público na assistência suplementar à saúde. Ela regula as operadoras
setoriais, inclusive na sua relação com os consumidores, contribuindo para o
desenvolvimento das ações de saúde no País.
Assim, há todo o sentido que a ANS
estabeleça um Rol de procedimentos que devem ser oferecidos aos usuários dos
planos de saúde. Garantir que esses procedimentos sejam custo-efetivos, levando
à melhor assistência possível aos usuários e garantindo a solvência das
operadoras, é algo de interesse público.
Tratamentos inadequados prejudicam os
consumidores e as próprias operadoras, pois podem custar caro demais, ter
desfechos clínicos inadequados, ou ambos. Infelizmente, o que se percebe é que
o Rol de procedimentos da ANS (iniciativa louvável e necessária) tem
apresentado diversos problemas desde sua criação.
O primeiro deles é a morosidade na inclusão
de novos procedimentos pois, por regras arbitrárias, este rol só pode ser
alterado com intervalos de tempo que chegavam a dois anos. Também há regras
estranhas, que envolvem a incorporação automática de drogas endovenosas, mas
que exigem a incorporação em separado de drogas por via oral.
Dada a velocidade dos avanços, muitas vezes
um tratamento melhor e até mais barato é recusado pela operadora, por não
constar do Rol vigente; e isso causa atrasos, judicializações, inevitável
aumento de custo e piora dos resultados dos pacientes.
A ANS e as operadoras se defendem dizendo
que o Rol será aperfeiçoado, porém, essa é uma conversa que se ouve há anos,
sem que haja uma melhoria perceptível. Infelizmente, as sociedades médicas de
especialidades só são chamadas a opinar depois que os relatórios que ensejam o
novo Rol definido ficam prontos.
Diferente do NICE, os pareceres da ANS
muitas vezes não são escritos por especialistas na área e reverter o seu
conteúdo em uma audiência pública torna-se uma tarefa árdua, gerando
posteriormente todo tipo de problema. Exames diagnósticos, por exemplo, são
problemáticos, particularmente em se tratando daqueles pouco solicitados, mas
que nem por isso são caros.
Este também é o caso de dosagem de nível
sérico de bussulfano e voriconazol, usados em pacientes transplantados, que
acabam por não serem pagos. As operadoras e a ANS alegam que basta pedir a
incorporação, porém, o processo é árduo, consome tempo e verbas.
No fundo, a discussão sobre o Rol ser
taxativo ou não é algo ultrapassado. Há muito tempo deveríamos estar discutindo
como melhorá-lo, por meio do aperfeiçoamento dos processos de análises,
incorporações e exclusões de procedimentos.
Ao simplesmente assumirmos que o Rol
vigente vai regular o que pode ou não ser fornecido aos usuários de planos de
saúde, sem considerar que ele deveria ser entendido como um processo dinâmico a
ser aperfeiçoado, estaremos mantendo uma sobrecarga maior de judicialização,
com tratamentos inadequados e de aumento de custos.
A discussão precisa ser muito mais
profunda. Por um lado, revogar todo e qualquer Rol, obrigando as operadoras a
cobrirem tudo, implicará um aumento de custos insano, inviabilizando, no
limite, a saúde suplementar. Por outro, deixar as pessoas completamente
desassistidas também não é aceitável.
É preciso ter um olhar correto, construindo
um Rol técnico, coerente, ético e custo-efetivo, muito distante do que temos
hoje. Ao se persistir a discussão nos moldes atuais, o prejuízo será de todos;
operadoras, usuários e do próprio SUS, que terá que abarcar mais milhões de
pessoas excluídas da saúde suplementar.
“Texto publicado originalmente no UOL em 16/6/2022.”
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