terça-feira, 25 de junho de 2024

LULA PRECISA ENTENDER QUE NÃO FOI ELEITO PARA UM CARGO DE DITADOR

Presidente só demonstra que não lida bem com organizações forjadas e consolidadas em um ambiente democrático

Um dia antes da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que decidiu pela manutenção da taxa de juros Selic em 10,5%, o presidente Lula deu uma entrevista atacando ferozmente o presidente do Banco Central do Brasil (Bacen), Roberto Campos, e a decisão anterior do Copom. Infelizmente, essa foi só mais uma das tantas vezes de um longo histórico de ataques a instituições e organizações democráticas no país.

No caso em particular, em que pese o erro de Roberto Campos em se misturar com o universo político em São Paulo e ter votado com uma camisa amarela nas últimas eleições, estando investido do cargo de presidente do Bacen, os argumentos de Lula são, no mínimo, risíveis e não se sustentam sob um escrutínio mínimo de sua fala.

Em primeiro lugar, porque Roberto Campos tem apenas um voto dentre os nove que decidem, ou seja, ele sozinho não tem qualquer poder de decisão. Em segundo, porque fosse verdade a tese da posição política do presidente do Bacen, ele teria votado contra a elevação dos juros durante o governo Bolsonaro, principalmente às vésperas das últimas eleições para presidente.

Em terceiro, ao contrário do que o Presidente da República afirmou, não estamos hoje com a taxa de juros real mais elevada dos últimos tempos. Durante os dois primeiros governos Lula, o Bacen, com Henrique de Campos Meirelles, manteve os juros reais bem mais elevados do que hoje por um bom período. E, naquele momento, as finanças públicas não estavam tão debilitadas como agora. Assim, o prêmio de risco para emprestar para o setor público hoje é maior do que boa parte daquele período, o que certamente impacta o nível de juros atualmente fixado.

Em quarto lugar, porque o cenário internacional ainda está bastante nebuloso, o que indica que, neste momento, qualquer tentativa de forçar a queda da taxa de juros poderá implicar mais saída de capital do país, com o agravamento da depreciação cambial e impacto sobre a inflação futura.

Em quinto, sob o regime de metas de inflação, o que importa para efeito de decisão de qual deve ser a taxa de juros primária é a expectativa de inflação futura e não a inflação passada. E, nesse ponto, dado o cenário incerto gerado por uma política fiscal totalmente expansionista e uma série de declarações irresponsáveis do nosso Presidente da República, não há como ancorar as expectativas de inflação e reduzir os prêmios de risco dos ativos financeiros.

Em realidade, a fala do Presidente é acima de tudo a prova de quão correta foi a decisão de dar independência decisória ao Banco Central, que, ao fazer o seu trabalho de controlar a inflação, tem protegido a sustentabilidade do próprio governo Lula. Ao agir de maneira infantil, pressionando pela saída do atual presidente do Bacen, Lula só demonstra que não lida bem com organizações forjadas e consolidadas em um ambiente democrático, cuja atuação nada difere das melhores práticas internacionais.

Aliás, este não é o primeiro episódio de agressão institucional de Lula. Para quem não lembra, em 2004, o então presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Luiz Guilherme Schymura, apesar de ter mandato até 2005, foi retirado do cargo de maneira ilegal e arbitrária apenas porque queria fazer valer o reajuste firmado em contratos com as empresas de Telecomunicações.

Na época, o reajuste deveria seguir o IGP-DI, que havia subido muito pelo impacto derivado da desvalorização cambial do ano anterior (2003), associada ao medo da vitória do então candidato Lula, dadas as suas falas durante a campanha eleitoral de 2002. O fim dessa história foi a substituição do presidente da Anatel por um sindicalista do setor, o engenheiro eletricista Pedro Jaime Ziller, e o não cumprimento dos contratos de reajustes.

Aparentemente, não passaremos por situação semelhante no caso atual do Banco Central por duas razões. Em primeiro lugar, Lula já não tem mais a mesma força política que tinha naquela época, quando passava como um trator por cima do que bem entendesse. Em segundo, qualquer cálculo político mostra que Lula teria muito mais a perder se atropelasse o Bacen de hoje. Possivelmente essa última seja a razão mais importante.

E é fácil entender o porquê. Se lembrarmos de uma pesquisa realizada pelo Datafolha no ano passado, 80% dos entrevistados diziam entender que Lula agia bem ao pressionar pela queda dos juros, ou seja, existe uma percepção da população, em geral, que a redução da taxa de juros é muito mais uma vontade política do que uma questão técnica.

Nessa linha, é muito cômodo para o atual Presidente criar um “inimigo imaginário” da nação, no melhor estilo “a culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser”. Traduzindo, “dado que eu não quero ajustar as contas públicas por razões políticas, eu transfiro a culpa do crescimento limitado da economia para o meu inimigo imaginário; no caso, a política monetária correta executada pelo atual Bacen.

Essa estratégia também tem a vantagem de manter um “inimigo imaginário” do país associado ao Bolsonaro em ano eleitoral, sabendo que, na virada do ano, o atual Presidente poderá escolher os novos diretores que, em conjunto com os já indicados por ele recentemente, serão os responsáveis pela condução da política monetária no próximo ano.

O único problema é que os agentes econômicos já estão precificando o que vem pela frente. Dólar, juros futuros, bolsa de valores e até mesmo as expectativas de inflação não estão dando bons sinais, ainda mais quando se olha para as perspectivas das contas públicas.

Neste contexto, colocar em dúvida a independência e sustentabilidade do Banco Central, construídas arduamente em um ambiente democrático, é o mesmo que questionar as “regras do jogo” no meio da partida, gerando mais incerteza sobre a rentabilidade futura de eventuais investimentos a serem realizados no país.

Lula precisa definitivamente entender que a vitória em uma eleição presidencial não lhe confere um poder ditatorial para conduzir o país da forma como bem entender, ignorando todas as instituições construídas ao longo do tempo, que representam as “regras do jogo” (principalmente as jurídicas formais) que regem o comportamento dos agentes econômicos e estruturam as interações negociais na sociedade.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 25/6/2024.”

terça-feira, 18 de junho de 2024

PRECISAMOS FALAR HONESTAMENTE SOBRE O NOSSO PROBLEMA FISCAL

É nítido que nossa carga tributária elevada é totalmente incompatível com um país com o nível de renda que apresentamos

Tenho criticado os seguidos governos brasileiros por ignorarem ou deixarem de lado o problema fiscal do país. E a razão para isso é simples. Estamos, aos poucos, contratando uma crise econômica futura de proporções semelhantes às que vivemos na década de 80 e início dos anos 90.

 o recém natimorto arcabouço fiscal foi mais uma etapa nesse processo, na medida em que já apresentou no seu DNA uma liberalidade para criar gastos futuros permanentes. E isso tem ficado cada dia mais claro. Não por outra razão, a desconfiança do mercado elevou-se substancialmente na última semana.

No fundo, o Ministro da Fazenda,  Fernando Haddad, também já percebeu o problema, só que tem procurado a solução, tanto de forma técnica quanto política, de maneira equivocada. A reoneração da folha de pagamento, do final do ano passado, e a recente limitação para a utilização de créditos tributários vinculados ao PIS/COFINS foram dois exemplos disso.

Tecnicamente, desconsideraram por completo o ciclo de planejamento das empresas afetadas por essas medidas. Politicamente desconsideraram que enfrentariam forte oposição no Congresso. Particularmente não divirjo da ideia de que o país precisa acabar com gastos tributários (desonerações e incentivos fiscais) seletivos, mas isso deve ser feito no âmbito da discussão da reforma tributária, dando total previsibilidade para que o setor privado se adeque às mudanças, com o devido tempo.

Infelizmente, essas tentativas desesperadas de reoneração tributária só serviram para apontar duas contradições do atual governo petista. A primeira é que Haddad está tentando corrigir um problema criado pela então presidente Dilma Rousseff (no caso da desoneração da folha de pagamentos). A segunda é que, ao mesmo tempo em que o governo propõe reonerar alguns setores sob o argumento de corrigir o déficit fiscal, resolve desonerar e subsidiar outros, como o caso da indústria automobilística, que recebeu de presente o Programa de Mobilidade Verde (Mover).

Fato é que cada dia fica mais claro que não há mais espaço para aumento de arrecadação. É nítido que nossa carga tributária elevada é totalmente incompatível com um país com o nível de renda que apresentamos. E pior, quanto mais recursos extrairmos do setor privado, menos investimentos teremos e, consequentemente, continuaremos a apresentar um nível de crescimento incompatível com a nossa necessidade. 

Não por outra razão, o foco da discussão recairá a partir de agora sobre os gastos públicos. E, nesse aspecto, não basta cobrarmos apenas o Executivo. Legislativo e Judiciário também precisam aprender a ser mais responsáveis fiscalmente, não só contribuindo para a redução de despesas correntes mas, também, entendendo o efeito de suas respectivas decisões sobre as contas públicas do país.

É totalmente inadmissível, por exemplo, que o legislador continue criando despesas obrigatórias sem indicar como contrapartida a fonte de receita para financiá-la. Da mesma maneira, há decisões espalhadas por todo o Judiciário que implicam elevações de gastos públicos sem qualquer base lógica e que implicitamente assumem que os recursos públicos são ilimitados.

No capítulo da imoralidade, poderíamos lembrar dos fundos Eleitoral e Partidário bilionários no Legislativo e as emendas impositivas dos parlamentares, que não seguem qualquer critério de alocação ótima do gasto público. Ainda nesta linha, vale lembrar dos supersalários do Judiciário, a proposta de retorno do quinquênio para juízes, dentre outros tantos gastos correntes evitáveis (inclusive o de passagem aérea paga para que segurança acompanhe Ministro do Supremo em jogo de futebol no exterior).

De toda forma, a maior parte no corte dos gastos públicos caberá ao Executivo, que pode atuar em várias linhas complementares. A primeira delas envolve cortes que dependem apenas do próprio governo de plantão, como, por exemplo, a revisão e melhoria na gestão de contratos já vigentes, adoção de melhores práticas no processo de compras governamentais e modificação da política salarial de entrada de novos servidores públicos e de reajustes posteriores.

Uma segunda linha de atuação passa pela unificação e racionalização de políticas sociais que visem evitar duplicidades de pagamentos e reduzir o “custo de transação” do setor público na sua interação com a sociedade. Em uma breve pesquisa nos sites do governo, é possível identificar um leque enorme de programas como, por exemplo, “auxílio brasil, auxílio reclusão, auxílio gás, farmácia popular, salário-família, salário-maternidade, seguro-defeso, BPC e abono salarial”.

A terceira linha, e de fundamental importância para não termos um apagão do Estado brasileiro ainda nesta década, é a revisão das vinculações constitucionais que definem gastos obrigatórios atrelados à receita corrente líquida, principalmente aqueles relacionados à saúde e educação. Esses valores, congelados durante a vigência da regra do teto de gastos, voltaram a crescer descontroladamente com a aprovação do arcabouço fiscal.

A quarta vertente envolve decisões estruturais com impacto observado apenas no longo prazo, mas que sinalizam para a sustentabilidade das contas públicas. Nesse grupo está incluída a Reforma Administrativa e a complementação da Reforma da Previdência.

A Administrativa deveria buscar a racionalização das carreiras existentes, criação de incentivos adequados e a revisão dos modelos de remuneração. Não é possível, por exemplo, que algumas carreiras jurídicas ganhem salários elevadíssimos para o padrão privado e ao mesmo tempo recebam bonificações por apenas realizar suas respectivas obrigações. Já a segunda reforma (da Previdência) terá que objetivar a sustentabilidade atuarial do nosso sistema previdenciário, algo que ainda não foi obtida com as reformas passadas.

Por fim, deveríamos, sim, atacar os gastos tributários, mas de uma maneira ampla e irrestrita, e dentro de uma reforma tributária completa, que envolva, inclusive, acabar com abatimentos na declaração do imposto sobre a renda. E, nesse caso, os “beneficiários de sempre” terão que ceder para que haja uma recalibração de impostos dentro da sociedade, com a consolidação de uma estrutura tributária mais eficiente e justa.

E isso deveria implicar também acabar gradativamente com fundos regionais e com a própria Zona Franca de Manaus, que só distorcem a alocação de recursos produtivos e que em nada contribuem para o desenvolvimento do país e para a correções da péssima distribuição de renda hoje observada.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 18/6/2024.”


terça-feira, 11 de junho de 2024

O CURIOSO CASO DA “TAXA DAS BLUSINHAS”: DISCUSSÃO QUE NÃO FOI TRAVADA

O consumidor perderá o poder de compra e o governo arrecadará mais, como de costume

Na última semana, foi aprovada a chamada  “taxa das blusinhas”, que nada mais é do que a imposição de um imposto de importação federal (II) de 20% sobre compras internacionais cujo valor seja de até US$ 50. Vale lembrar que esse novo imposto irá se juntar aos 17% de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) já cobrados pelos estados. Como o ICMS é cobrado “por dentro” (cálculo realizado sobre o valor total do produto), a tributação agregada dos dois impostos será de 44,58%.

Em realidade, essa nova alíquota deve impactar diretamente a compra realizada em sites estrangeiros, tais como Shein, Shopee e AliExpress. Vale destacar que a aprovação foi por votação simbólica, o que permitiu que a maioria dos congressistas que concordaram com essa cobrança se escondessem de seus eleitores, em uma atitude covarde e antidemocrática, indicando total falta de transparência do parlamento.

Várias entidades empresariais nacionais se manifestaram a favor da introdução desse imposto, alegando que essa medida corrigiria uma assimetria tributária, com impacto positivo sobre o nível de investimentos e empregos no país. De outra parte, as grandes varejistas internacionais de e-commerce argumentam que, com a imposição dessa alíquota, o consumidor pagará mais caro pelo produto adquirido.

No fundo, nessa discussão, os dois grupos até podem ter um pouco de razão, mas o foco do problema será sempre o mesmo: o Estado brasileiro, que quer elevar sua arrecadação. E explico a razão do meu entendimento com base na lógica que permeia toda a discussão teórica e prática sobre o que se conhece em economia como “tributação ótima”.

Inicialmente, há que se entender que, ao contrário do senso comum, não será o consumidor que arcará com a totalidade do aumento imposto. Seja direcionado diretamente para o consumidor, seja para o empresário que vende a mercadoria, o pagamento do tributo acaba sendo sempre compartilhado entre ambos. Já a proporção que caberá a cada um dependerá das condições competitivas do mercado e da capacidade de ajuste da oferta dos empresários.

Entretanto, podemos dizer que alguma elevação de preços sempre haverá, corroborando em parte o entendimento das plataformas de comércio. E, neste contexto, os consumidores sempre sairão perdendo, na medida em que uma parte deles continuará a comprar o produto pagando mais caro e a outra deixará de comprar o bem importado, entendendo que o nacional equivalente também é muito caro. A questão que fica é saber, portanto, qual o impacto agregado desses dois efeitos para a indústria brasileira.

Sob esse aspecto, podemos levantar algumas hipóteses. Em primeiro lugar, parte da demanda daqueles consumidores que continuarão a comprar o produto poderá ser redirecionada para o concorrente nacional, conforme sugerido pelos empresários brasileiros que defendem a medida (gerando uma espécie de efeito substituição). Mas, outra parte continuará comprando o importado em plataformas internacionais.

De toda maneira, como esses dois grupos continuarão a comprar o produto alvo da nova alíquota com um preço mais elevado, eles terão uma redução de renda disponível para comprar outros produtos nacionais que consumiam anteriormente (ou, no limite, terão que buscar financiamento para manter o mesmo nível de consumo). 

Como consequência, uma outra parte do empresariado nacional que não concorre com os produtos importados verá sua demanda reduzida. Nesse caso, o efeito observado será diametralmente oposto ao sugerido pelos defensores da elevação da alíquota de importação, ou seja, haverá desemprego nesses segmentos de mercado.

Já aqueles consumidores que compram produtos importados e deixarão de fazê-lo porque o preço subiu e que, ao mesmo tempo, entendem que o substituto nacional é muito caro, poderão redirecionar seu consumo para outros produtos nacionais. A não ser que guardem o dinheiro que não gastarão ou resolvam pagar eventuais dívidas já contraídas, esse movimento poderá criar um vetor positivo de demanda para certas empresas (com eventual contratação de novos empregados).

De toda forma, o efeito líquido desse processo para o conjunto de empresas nacionais não é claro. Em que pese poder haver uma rebalanceamento de demanda e até mesmo de margem de lucros dentro dos vários setores nacionais, o efeito alocativo (contratação de mão-de-obra, investimentos, etc.) final não é algo trivial de ser estimado. 

E, mais do que isso, qualquer conclusão sobre qual será o efeito agregado para a sociedade dependeria da realização de um estudo de equilíbrio geral que conseguisse captar o impacto sobre o nível de renda derivado de alterações em uma série de variáveis econômicas (tais como reações de empresários e de consumidores a mudanças de preços e de tributação), algo que nem de longe foi realizado. 

Em outras palavras, como de costume, há muito discurso de políticos e pressões de lobbies em favor de protecionismo e pouca análise séria e objetiva sobre o resultado efetivo final dessa alteração legislativa. De toda essa história, as únicas certezas que podemos ter é de que o consumidor perderá poder de compra e o governo arrecadará mais, como de costume.

Note-se que se o problema é, de fato, criar uma isonomia tributária, o correto seria reduzir a tributação sobre o consumo no país. Só assim poderíamos verificar efeitos positivos para o conjunto da sociedade. Entretanto, isso implicaria também fazer uma reforma tributária séria e completa (recalibrando impostos para a renda) e, principalmente, uma revolução na gestão da coisa pública (entenda-se melhorar substancialmente a eficiência do gasto público), algo pouco crível no nosso contexto político atual.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 11/6/2024.”

terça-feira, 4 de junho de 2024

ARROZ DE LULA: UMA RECEITA SOBRE O QUE NÃO FAZER NA ECONOMIA

Continuamos a ser um dos países mais fechados do mundo

Em  discurso recente, o presidente Lula criticou o aumento de preços do arroz e informou à população que iria importar arroz para criar uma espécie de limitador de preços do produto, sem dizer qual seria o “preço ideal” em sua visão.

Não há dúvidas que o desastre que tomou conta do  Rio Grande do Sul é muitíssimo grave e que, como já escrevi em texto anterior,  não é hora de politizarmos a questão mas, sim, concentrarmos todos os esforços para resolvermos os problemas de uma maneira coordenada. Entretanto, quando vejo um discurso como o do nosso presidente, fico assustado. Isso porque, definitivamente, o preço do arroz é hoje um “não problema”, por várias razões, que, com a intervenção equivocada do Estado, pode se tornar um problema.

Em primeiro lugar, porque o arroz é um alimento de baixo valor nutricional para o qual existem vários produtos substitutos. E, como mostra qualquer livro básico de economia, a presença de produtos substitutos é um forte limitador a tentativas de elevação persistente de preços. Ou seja, melhor faria o Estado se divulgasse quais seriam esses produtos nutricionalmente substitutos.

Em segundo lugar, porque os preços dos alimentos flutuam o tempo todo devido a movimentações de variáveis econômicas que determinam tanto o nível de oferta como de demanda no mercado. E, como sempre escrevo, o preço é apenas um sinal que gera incentivos para os ofertantes decidirem o quanto ofertarão de produtos e os consumidores o quanto estarão dispostos a consumir.

Preços elevados indicam, além de mais rentabilidade, um excesso de demanda pelo produto, estimulando que produtores ofertem mais no futuro. Nesse sentido, qualquer tentativa de controlar preços equivaleria a dar uma informação equivocada ao mercado (no caso, de que não haveria escassez), criando distorções que, certamente, afetarão negativamente a oferta do produto no futuro.

Já vimos isso acontecer no passado quando do tabelamento de preços durante o governo Sarney e dos controles dos preços do combustível e da eletricidade no governo Dilma. O que observamos, nesses casos, foi uma desestruturação de todos os setores afetados por essas intervenções. Em realidade, tentar controlar o preço é o mesmo que colocar gelo no termômetro para baixar a febre. Você nunca atua nas causas do problema (quando eles realmente existem, o que não é o caso).

Aliás, para além do próprio presidente Lula, há uma crença equivocada na sociedade brasileira de que empresários são “agentes econômicos malvados por natureza”, sempre dispostos a esconder produtos com a finalidade de “elevar abusivamente os preços” no mercado. Ledo engano. A não ser que estejamos tratando de um cartel, cuja factibilidade do acordo depende: (i) da correta definição do mercado a ser analisado; (ii) dos incentivos vigentes para a realização do acordo; e (iii) da possibilidade de monitoramento posterior, não há qualquer razoabilidade econômica em assumir a tese do “empresário malvadão”.

Não por outra razão, até foi criado no âmbito da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) um  Guia para Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços para dar um mínimo de razoabilidade sobre o conceito jurídico de “aumento abusivo de preços”, que, sob o ponto de vista econômico, não tem qualquer sentido. Nesse documento estão claramente destacadas a necessidade de considerar a lei de oferta e demanda e a sugestão de se avaliar se o aumento de preços se deve a condutas anticompetitivas.

E, de fato, bastariam essas duas perspectivas para dar o assunto do arroz por encerrado. No caso em particular, devemos lembrar que toda a infraestrutura de transporte e logística do Rio Grande do Sul foi afetada, o que implica custos mais elevados e ausência do produto em determinados momentos. Em outras palavras, o lado da oferta (custos) pode ter pesado muito nas alterações de preços.

Mas também vale destacar que, pelo lado da demanda, toda a publicidade dada ao caso pelo governo criou um medo de desabastecimento para os consumidores, que passaram a comprar em maior quantidade, antecipando um consumo futuro. E isso, obviamente, também pressionou os preços para cima.

Sob o ponto de vista prático, com o retorno do funcionamento da infraestrutura e com o deslocamento de parte da demanda para os produtos substitutos, o preço do arroz naturalmente tenderá a voltar próximo ao patamar anterior. Aliás, isso já tem sido observado. Mas, infelizmente, o assunto tem forte apelo popular e tem sido tratado de uma forma não técnica.

E um bom exemplo disso é a insistência do governo em importar arroz com o objetivo de controlar os preços, inclusive para criar estoques reguladores, conforme informado pelo  Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. E isso, apesar de o Instituto  Rio Grandense de Arroz (IRGA) ter deixado claro que 90% da safra de arroz já tinha sido colhida.

Talvez o Ministro não saiba, mas adquirir o produto e manter estoque regulador implica gastos adicionais, sendo que esses recursos poderiam ser alocados em frentes cuja necessidade realmente exista. Ou seja, ele desconsidera o custo de oportunidade dessa decisão, ainda mais para um país com déficit público crescente, que terá que alocar uma fortuna para a recuperação do estado do Rio Grande do Sul.

E, se não bastasse tudo isso, é assustador o espanto do Ministro com o aumento do preço do arroz no Mercosul. Ao anunciar que o governo brasileiro compraria o produto do bloco, ele antecipou que haveria um aumento de demanda no mercado, o que, por óbvio, fez com que os preços se elevassem. Nada mais natural do que isso, em uma economia de mercado que também é influenciada por expectativas.

Finalmente, para fechar a sequência dos absurdos, o governo pretende distribuir o produto com a sua logomarca, sob o pretexto de evitar desvios e especulação. Entretanto, este é um comportamento populista em um momento muito triste para os gaúchos, já antecipando a próxima campanha eleitoral. Causa-me espanto que nem o Tribunal de Contas da União (TCU) nem o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tão ágeis e zelosos em certas circunstâncias, não tenham se manifestado até o momento com algo que, nitidamente, envolve má gestão do dinheiro público com fins eleitoreiros.

Talvez a única coisa positiva dessa história toda tenha sido a ideia de reduzir os impostos de importação para o arroz, algo que pode, de fato, elevar a competição no mercado doméstico e reduzir preços de maneira consistente no futuro. Mas, pelas mesmas razões, essa redução deveria se estender a todos os setores da economia, uma vez que continuamos a ser um dos países mais fechados do mundo.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 4/6/2024.”

terça-feira, 28 de maio de 2024

POR QUE O CODESHARE ENTRE AZUL E GOL DEVERIA SER ANALISADO PELO CADE

Acordo merece um acompanhamento mais de perto da ANAC e do Cade sobre seus efeitos

Na última semana,  Azul e Gol anunciaram um acordo  para compartilhamento de voos em rotas nas quais não há sobreposição de voos entre as  duas empresas. Ademais, elas informam que permitirão que membros dos programas Azul Fidelidade e Smiles (da Gol) acumulem pontos ou milhas no programa de sua escolha quando adquirirem os trechos inclusos no codeshare.

Não tenho qualquer dúvida de que, sob o ponto de vista empresarial, há todo sentido nesta operação, principalmente para a Azul, que tem uma larga capilaridade por todo o país, como o próprio comunicado informa. Não obstante, não vejo como líquido e certo que o consumidor só terá a ganhar com esse acordo. Por isso, entendo que, seja por precaução das próprias empresas, seja porque envolve uma questão concorrencial não trivial, esta operação, em particular, deveria ser apresentada previamente ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Apesar de a Resolução 17/2016 do Cade e decisões posteriores do órgão permitirem uma eventual intepretação de que esse tipo de acordo não precisaria ser apresentado durante um período de dois anos (devendo só ser levado posteriormente para análise se ultrapassar esse limite de tempo), entendo que há questões que merecem ser mais bem entendidas sobre o efeito dessa “união de esforços entre as empresas”.

E, para isso, lembro de três aspectos. O primeiro é que, pelo quanto anunciado até o momento, o compartilhamento não está direcionado para a redução de custos, mas sim para a elevação de receitas. Não há aparentemente nada que indique, por exemplo, racionalização de rotas ou redução de custos operacionais em aeroportos, que estejam diretamente ligados ao quanto proposto. Ou seja, o objetivo parece ser reduzir algum grau de ociosidade nos voos (melhorando a eficiência alocativa) e capturar parte da disposição de alguns consumidores pagarem um preço adicional (captura do chamado excedente do consumidor).

O segundo deles é que a análise de concorrência deve ir além de uma simples avaliação de cláusulas contratuais e de possíveis mudanças estruturais no mercado. Na realidade, até mais importante do que esses aspectos é a análise das alterações dos incentivos a concorrer gerados no mercado.

E, nesse sentido, vale lembrar de um  estudo de 2023 do Cade que, apesar de aplicado a processos de aquisições propriamente ditos, levanta, ao meu ver, uma preocupação bastante pertinente no setor, que também não deveria ser negligenciada em casos de codeshare envolvendo empresas que operam no mesmo país, qual seja: o impacto da concorrência potencial como forma de inibira cobrança de preços supra competitivos.

De uma maneira simplista, a lógica da tese da concorrência potencial indicaria que, sob certas circunstâncias, mesmo em rotas nas quais opera uma única empresa, poderíamos encontrar preços próximos ao competitivos. Isso ocorreria porque a companhia aérea já estabelecida nessa rota perceberia que empresas que estão em mercados (rotas) próximos (principalmente operando em mesmos aeroportos) poderiam facilmente entrar nas suas rotas, caso elevem seus preços.

No codeshare apresentado na última semana, dado que se limita a rotas nas quais as duas empresas não concorrem atualmente, a questão seria avaliar se essa associação não tiraria esse tipo de pressão competitiva ou mesmo se não atrasaria uma eventual entrada de uma das duas empresas na rota de sua “nova associada”. Ademais, vale entender melhor também o efeito sobre o próprio grupo Abra, da qual a Gol passou a fazer parte mais recentemente.

O terceiro aspecto a ser considerado é que, no setor aéreo, o modelo de precificação envolve o que se conhece na literatura econômica como discriminação de preços de terceiro grau. Mais precisamente, as empresas procuram identificar grupos de consumidores com diferente disposição a pagar e reservam um número de assentos dentro de cada voo considerando essa perspectiva.

Nesse sentido, não há como se descartar, a priori, que a venda de passagem combinada e consequente elevação da demanda nessas rotas não faça, pela própria lógica econômica, com que o número de assentos vendidos com preços menores seja reduzido, dando lugar à venda de passagem com preços mais elevados. Ademais, é possível que sobrem menos assentos disponíveis para emissão de passagem via programa de fidelidade, inclusive com a necessidade de utilização de mais pontos.

De toda forma, a redistribuição de assentos entre grupos não é um problema per se, cabendo avaliar também o efeito sobre a quantidade total de passagens vendidas nesses trechos (eficiência alocativa).

Fato é que, a exemplo de qualquer caso envolvendo a área de defesa da concorrência, não há uma regra ex-ante que permita afirmar que este é ou não um caso que efetivamente restringirá a concorrência. Entretanto, dado o quanto apresentado até o momento, faz todo sentido econômico o Cade avocar e conduzir uma análise mais detalhada deste codeshare; mesmo porque a própria lei antitruste brasileira (Lei 12.529/11) contém dispositivos para isso.

Reforço que não estou apregoando a priori que esse acordo deva ser desconstituído, mas merece, no mínimo, um acompanhamento mais de perto da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) e do Cade sobre seus efeitos nos mercados afetados pela operação, considerando, ainda mais, a possibilidade futura de uma união definitiva entre as duas empresas.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 28/5/2024.”

quinta-feira, 23 de maio de 2024

SERÁ QUE NOS DIAS DE HOJE PRECISAMOS DE EMPRESAS ESTATAIS NO PAÍS?

Em geral, escuto três tipos de argumentos em favor de empresas públicas

Nos últimos meses, uma série de falas e de atitudes do  Presidente da República e de alguns de seus ministros têm ressuscitado um debate envolvendo qual deveria ser o papel de empresas sob o controle (ou participação) do Estado no país. Sob a minha ótica, há uma pergunta que antecede essa discussão, qual seja: precisamos de empresas públicas nos dias de hoje?

Em geral, escuto três tipos de argumentos em favor de empresas estatais. O primeiro deles é o de que elas são empresas estratégicas para o desenvolvimento econômico. Aliás, esse é o principal argumento da maioria dos políticos e do próprio presidente da república. Implicitamente, este primeiro argumento nos leva à necessidade lógica de uma avaliação econômica da presença do que se denomina falha de mercado.

A ideia seria que, se deixássemos por conta do mercado, determinados serviços não seriam criados e certos setores não se desenvolveriam. Há, entretanto, alguns aspectos a serem considerados. O primeiro deles é que esse pressuposto pressupõe a identificação das chamadas falhas de mercado, que envolvem conceitos técnicos, como a presença de bens públicos e externalidades. O problema é que, no caso brasileiro, a presença de estatais, com raríssimas exceções, como o caso da Embrapa, não tem como contrapartida a identificação de qualquer falha de mercado que a justifique.

Aliás, há uma grande confusão entre o conceito econômico de bem público e jurídico de empresa pública. Enquanto o primeiro nos leva à conclusão de que, na ausência do Estado, determinados serviços não seriam criados (dos quais são exemplos segurança pública, defesa nacional, iluminação pública, dentre outros), o segundo envolve simplesmente uma decisão de opção política, sem qualquer justificativa econômica.

Por exemplo, na ausência do Estado, nada indica que não teríamos hoje uma empresa geradora de energia, outra voltada à exploração e refino de petróleo, aeroportos privados, empresas de telecomunicações ou mesmo de comunicações.

Note-se ainda que, mesmo tendo identificado algum tipo de falha de mercado, a solução pode passar apenas pela coordenação do Estado, sem que haja a necessidade de se criar uma empresa pública. Bons exemplos podem ser observados em casos de concessões e parcerias público-privadas, associadas a modelos regulatórios eficientes.

No limite, pode-se pensar até em coordenação estatal via políticas industriais baseadas em “incentivos econômicos”, com prazos bem delineados, cobrança de metas e revisões constantes, mas nunca centradas em protecionismo, subsídios puros ou compras governamentais sem critérios, como tem proposto o atual governo.

O segundo argumento em defesa de estatais é o de que, se entregue ao setor privado, essas empresas não atenderão ao interesse público, uma vez que só pensam no lucro. Mais precisamente, a alegação é que uma eventual privatização provocará elevação de preços e redução da qualidade de serviços. Esse é o caso da discussão envolvendo a possibilidade de venda do controle da Sabesp em São Paulo.

Entretanto, não há qualquer comprovação de que as empresas públicas prestam um serviço melhor e, ao mesmo tempo, com preços menores do que as empresas privadas. Aliás, a percepção da sociedade é, em geral, a oposta.

De toda forma, não há nada de errado em empresários buscarem lucro, mesmo porque sem que isso ocorra, não haverá incentivo para se manter no negócio. A questão que se coloca é o que seria um lucro razoável, que atenda, ao mesmo tempo, o interesse do consumidor representado pelo trinômio modicidade tarifária, universalização e qualidade do serviço.

E, pressupondo que estamos tratando de mercados não competitivos (porque, do contrário, não haveria razão para atuação do Estado), há todo um arcabouço regulatório que pode ser utilizado para a consecução dos objetivos que atendam aos interesses da sociedade. Só que, para isso, o modelo regulatório deve ser bem desenhado e o órgão regulador deve ter independência técnica e financeira para atuar.

Note-se que uma eventual crítica de que as agências podem ser suscetíveis a pressões políticas (ou mesmo do setor empresarial) valeria ainda mais para empresas estatais cujas nomeações não passam pelo mesmo processo de escolha dos diretores das agências e cujos dirigentes não têm garantia de mandato pré-definido.

Por fim, o terceiro argumento que leio constantemente em favor de empresas estatais é o de que a maioria delas são superavitárias e geram lucro para o Estado, contribuindo com o fechamento das contas públicas. Particularmente, entendo que essa é uma discussão sem qualquer sentido, na medida em que esse cálculo desconsidera o custo de oportunidade que o Estado incorre em alocar pessoas, recursos e tempo na gestão de algo que poderia ser feito igualmente ou melhor pela iniciativa privada, sendo que suas prioridades deveriam estar voltadas para serviços como educação, saúde e segurança pública, por exemplo.

De toda forma, não é verdade que a maioria das empresas públicas brasileiras são superavitárias. Em 2023, por exemplo, no agregado, as nossas empresas estatais fecharam com um rombo de R$ 2,2 bilhões. E mesmo aquelas que são superavitárias podem obter esse resultado usando seu eventual poder de mercado em segmentos pouco competitivos e não, necessariamente, por serem eficientes. Ou seja, neste caso, a conta acaba sendo paga pelo “consumidor-cidadão”.

Em realidade, sempre que vejo alguém defendendo a necessidade de termos empresas estatais no país, pergunto-me quais são os reais interesses por trás dessa insistência, ainda mais lembrando dos vários casos de corrupção como o Mensalão e Petrolão. E isso sem entrar a fundo nas decisões de investimentos ineficientes, contratação e gestão de mão-de-obra, escolha de fornecedores, etc.

Parece-me que o melhor caminho a ser seguido seria identificarmos os casos nos quais há, de fato, sentido econômico (como o descrito neste texto) para mantermos empresas públicas e privatizarmos todas as demais estatais, considerando, inclusive, a possiblidade de criarmos modelos de venda de ativos públicos que gerem mais concorrência nos mercados, em benefício do próprio consumidor.

Ademais, poderíamos usar esse dinheiro para abatermos parte da dívida pública, reduzindo os serviços (juros) pagos a cada período, liberando recursos para ampliarmos investimentos em áreas carentes, como educação, saúde e segurança pública.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/5/2024.”

terça-feira, 14 de maio de 2024

DIVERGÊNCIA SOBRE REDUÇÃO DE JUROS DIZ POUCO SOBRE POLÍTICA MONETÁRIA

Futuro da política monetária nos próximos dois anos já está definido desde o resultado das eleições passadas

Na última semana, o Comitê de Política Monetária (Copom) reduziu a taxa de juros Selic para 10,50% ao ano. Em seu comunicado, o Comitê, como de costume, elencou os principais aspectos que embasaram sua decisão.

No cenário externo, foram destacados como pontos preocupantes a incerteza sobre o início da flexibilização de política monetária nos Estados Unidos e sobre a velocidade com que se observará a queda da inflação de forma sustentada em diversos países.

Já no âmbito doméstico, o Copom alertou que há um conjunto de indicadores de atividade econômica (principalmente do mercado de trabalho) que tem apontado um maior aquecimento econômico do que era de se esperar. Em particular, foi destacada uma resiliência da inflação de serviços maior do que a esperada, dado que o hiato do produto (diferença entre o PIB efetivo e o potencial) tem sido menor do que o projetado.

Também foram apontadas preocupações com a falta de compromisso do governo com um ajuste fiscal crível e seu potencial impacto sobre a política monetária. De fato, a manutenção de uma trajetória das contas públicas sustentável é fundamental para ancorar as expectativas de inflação e permitir a redução dos prêmios de risco dos ativos financeiros e, consequentemente, a queda da taxa de juros primária.

E isso é ainda mais verdade em um modelo de metas de inflação cuja taxa de juros neutra é um balizador importante no processo do Banco Central (Bacen). Essa taxa nada mais é do que aquela que, pressupondo uma situação de pleno emprego, não afeta o ritmo de inflação e de crescimento correntes. Ela é, no fundo, um parâmetro para se tomar decisões de política monetária.

Assim, se a inflação estiver acima da meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), o Bacen deverá subir a  taxa de juros primária (Selic) vigente acima da neutra para trazer a inflação para o centro da meta definida. Ato contínuo, se a inflação estiver abaixo da meta (fato raro no Brasil), a taxa Selic deverá cair, estimulando a economia e fazendo com que a inflação suba.

A grande dificuldade que se tem nesse processo é identificar qual seria a taxa de juros neutra a cada momento e qual a calibragem correta da taxa Selic (acima da neutra) para levar a inflação para a meta no horizonte definido pela autoridade monetária. E as incertezas apontadas na última ata do Copom (principalmente com relação às contas públicas) só reforçam que essa não é uma tarefa trivial, abrindo margem para visões distintas sobre o ritmo da queda.

Nesse sentido, parece-me que o valor que o mercado financeiro e a imprensa estão atribuindo à divergência entre os membros do Copom é algo um tanto quanto exagerado. A interpretação de que o “racha” entre os membros indicados pelo atual governo e os dos governos anteriores apontaria para um afrouxamento da política monetária no futuro ignora alguns fatos objetivos.

Em primeiro lugar, não houve divergência sobre a direção que os juros devam tomar. Todos concordaram que há, neste momento, espaço para uma redução da taxa primária. E como disse, dado o grau de incerteza vigente na economia brasileira e mundial, há claramente espaço para uma discussão técnica sobre qual o ritmo da queda da taxa de juros a ser empreendida.

Em segundo, não me parece razoável assumir, a priori, que todos os indicados pelo  governo Lula estariam lá apenas por razões políticas, com o objetivo de atender aos interesses ditados pelo presidente e por seu partido.

Por exemplo, o economista e professor da FGV Paulo Picchetti é reconhecidamente um profissional do mais alto gabarito, um dos maiores especialistas em inflação do país e profundo conhecedor de modelos econométricos. E quem já teve a oportunidade de trabalhar com ele sabe de sua seriedade e ética profissional.

Em terceiro, o rumo futuro da política monetária nos próximos dois anos já está definido desde o resultado das eleições passadas. Gostemos ou não, o presidente da república tem o direito (e até o dever) de nomear os próximos diretores do Banco Central e já deixou bem claro sua total falta de compromisso com qualquer ajuste fiscal sério e com uma política monetária que busque controlar a inflação. Aliás, justiça seja feita, ele externou claramente sua posição durante o próprio processo eleitoral.

Nesse contexto, parece-me totalmente sem sentido só agora ter caído a ficha para o mercado e para a imprensa em geral sobre o rumo da política monetária a partir da troca dos próximos diretores. Se fosse isso mesmo, estaríamos diante de gestores profissionais de fundo assumindo uma postura “pollyanna” ou adotando uma estratégia de avestruz, escondendo a cabeça debaixo da terra para fugir do óbvio.

Como não creio nisso, a única explicação plausível que vejo para esse suposto “treme treme” no mercado financeiro na última semana é que se criou um medo generalizado de que agora ficará mais difícil convencer poupadores de que vivemos no país das oportunidades e que existe um amplo leque de ótimos investimentos com retornos razoáveis disponíveis.

Na realidade, o “rei já está nu há muito tempo” e a associação de políticas fiscal e monetária expansionistas, no atual contexto do país, só fará repetir no futuro o que aconteceu no governo Dilma, quando a inflação passou de dois dígitos. O problema é que é muito fácil olhar para os dados atuais e acreditar que a economia esteja bem, quando o que importa, de fato, é a dinâmica que estará sendo criada para os próximos anos. Quem viver verá.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 14/5/2024.”

quarta-feira, 8 de maio de 2024

NÃO É HORA DE POLITIZAR A TRAGÉDIA NO RIO GRANDE DO SUL

Definitivamente não precisamos disso neste momento

Acompanhando com uma certa incredulidade os debates a respeito da tragédia que se abateu sobre o estado do Rio Grande do Sul, tenho visto dois tipos de discursos, tanto em rede sociais como na própria imprensa em geral. O primeiro envolve questionamentos sobre de quem seria a culpa dessa tragédia. O segundo indica uma tentativa de associar diretamente o problema ocorrido com o aquecimento global.

No primeiro caso, vi, por exemplo, gente apontando o dedo para o governador do estado e para o prefeito de Porto Alegre, como se eles tivessem sido os grandes responsáveis pelas inundações observadas. Claro que sempre podemos encontrar erros pontuais de gestão e que são poucos os políticos que realmente se preocupam em destinar os recursos necessários para a pasta de Assistência Social e, mais especificamente, para a Defesa Civil, muito provavelmente pela falta de visibilidade desses gastos para os eleitores.

Entretanto, não é disso que trata o caso. O que aconteceu no Rio Grande do Sul foi um ponto totalmente fora da curva e a tragédia ocorreria de toda forma. Talvez o impacto sobre as pessoas fosse um pouco menor, mas não escaparíamos do desastre. E isso mostra que temos muito a aprender com as decisões de localização de população e urbanização que tomamos ao longo do tempo.

Vi também jornalistas questionando agressivamente a razão de os modelos de previsão climática “terem falhado” em captar o montante de chuva que viria, sem ao menos entenderem que esses modelos estatísticos (pela própria definição) não são uma conta matemática simples que gera um único resultado certo, além de estarem implicitamente sujeitos a uma série de variáveis que podem mudar de uma hora para outra.

Mas o pior de tudo foi observar que a velha  polarização entre petistas e bolsonaristas também chegou ao Rio Grande do Sul. De um lado, alguns bolsonaristas fazendo todo tipo de acusação ao comportamento do atual presidente e ao daprimeira-dama diante do caso. De outro, alguns petistas lembrando que o Rio Grande do Sul foi um dos estados nos quais Bolsonaro venceu, tentando associar esse fato com o “dilúvio” ocorrido. Definitivamente não precisamos disso neste momento.

Com relação às questões climáticas, alguns já se apressaram em relacionar o evento no Rio Grande do Sul com o aquecimento global, destacando que já estamos pagando a conta de nossas decisões passadas de interferir no meio ambiente. Até o Le Monde, jornal francês, fez uma  matéria nesse sentido.

Para mim, uma associação simplista desse tipo cheira um oportunismo descabido de pseudoambientalistas, que estão mais preocupados em reafirmar suas respectivas crenças do que com o fato ocorrido em si. E quando afirmo isso, estou bem longe de questionar que a nossa interação com o meio ambiente gere efeitos. Ao contrário, parece-me lógico reconhecer que tal correlação existe.

Não é essa a questão que importa, mas sim entender a proporção do impacto e o ritmo de mudança que essa interferência gera. E compreender esses aspectos é fundamental para desenharmos políticas públicas mundiais que induzam nossa mudança de comportamento, mas que, ao mesmo tempo, minimizem os custos associados a essa alteração para todos nós.

O problema é que, até o momento, não temos nenhum estudo definitivo que mostre o quanto das mudanças climáticas é consequência da interferência humana e o quanto deriva de um processo natural de evolução do planeta. No fundo, a questão sobre o aquecimento global é séria demais para trazê-la para o meio de uma tragédia, junto com crendices e paixões ideológicas.

Para longe dessas discussões que não agregam nada, o fato objetivo e prático com o qual teremos que lidar é que essa tragédia no Rio Grande do Sul deixará uma conta elevadíssima para o estado e para o próprio país, algo ainda muito difícil de ser estimado neste momento.

Para além do trauma pessoal das famílias gaúchas (que perderam parentes, bens materiais e que ainda podem perder o emprego com a destruição de empresas), há custos associados à reconstrução de infraestrutura (estradas, ferrovias, aeroportos, etc.) e outros gastos necessários para a retomada da atividade econômica em todos os setores do estado.

Não por outra razão, o governador  Eduardo Leite (PSDB) afirmou que o Rio Grande do Sul vai precisar de um “Plano Marshall”. De fato, reconstruir não será uma tarefa fácil e envolverá um grande esforço não só dos gaúchos, mas de todos os brasileiros.

A boa notícia é que temos assistido a uma mobilização da sociedade civil como nunca antes vista. Mais do que isso, os políticos em Brasília parecem ter entendido a necessidade de dar uma resposta rápida ao caos que se criou no estado. Não por outra razão, foi aprovado Projeto de Decreto Legislativo (PDL) reconhecendo estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul até 31 de dezembro de 2024, permitindo maior agilidade na liberação de recursos federais.

O mais importante daqui em diante é aprender com o evento climático, entender o que pode ser melhorado em termos de investimento em prevenção a catástrofes e criar uma governança forte de distribuição de recursos, considerando as reais prioridades das pessoas e do estado, inclusive analisando o efeito multiplicador que cada real alocado poderá gerar para toda a sociedade. Sem que isso seja feito, toda essa tragédia terá sido em vão.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 8/5/2024.”

terça-feira, 30 de abril de 2024

PEC DO QUINQUÊNIO PROVA QUE PRECISAMOS PASSAR NOSSO JUDICIÁRIO A LIMPO

Sob o ponto de vista econômico, essa proposta carrega dois problemas

Encampada pelo presidente do Senado (o advogado  Rodrigo Pacheco do PSD de Minas Gerais), foi aprovada nesta semana na Comissão de Constituição e Justiça do Senado a denominada PEC do Quinquênio (PEC nº 10/2023), que traz de volta um privilégio há muito tempo extinto. Pelo texto em discussão, será criado um adicional de 5% do salário recebido para cada cinco anos trabalhados. Esse privilégio poderá ser recebido por agentes públicos de carreiras jurídicas. Mais especificamente, os agraciados com isso são os de sempre: juízes, membros do Ministério Público, defensores e advogados públicos, delegados de polícia e ministros dos Tribunais de Contas.

Por si só, essa proposta já é um absurdo, na medida em que só amplia a diferença de salários de uma casta privilegiada da sociedade dos demais funcionários públicos e, principalmente, do setor privado. Pior ainda é a desculpa de alguns políticos para o encaminhamento dessa proposta.

Uns falam que é uma forma de incentivar que esses profissionais permaneçam no serviço público, como se os salários recebidos fossem baixos. Outros, como o caso do próprio presidente do Senado, afirmam que essa seria a contrapartida para acabar com os penduricalhos pagos no Judiciário, que hoje suplantam o teto do funcionalismo e criam os supersalários. Como se a solução para um flagrante descumprimento da lei fosse mudar a lei para manter o privilégio.

Fato é que, sob o ponto de vista econômico, essa proposta carrega dois problemas. O primeiro é que cria mais um rombo nas contas públicas, já tão debilitada por outros absurdos na gestão da coisa pública. E como tenho escrito nesta coluna, o resultado será mais inflação no longo prazo, que afetará os mais pobres, que não têm mecanismos de defesa contra a inflação como os nossos potenciais agraciados com essa PEC.

O segundo problema econômico está relacionado aos incentivos gerados. Em vez de se criar critérios de produtividade para eventuais remunerações adicionais que se pretenda incorporar, essa PEC equaliza todos os profissionais, sem premiar aqueles que, de fato, sejam mais produtivos. Por óbvio, o que faremos é desestimular a busca por eficiência nessas carreiras, uma vez que ninguém terá motivo para individualmente ser mais produtivo. 

Note-se que, ao contrário do que escreveu recentemente o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, em um artigo intitulado “Quanto vale o Judiciário”, temos sim hoje um Judiciário caro e ineficiente.

Por exemplo, em “Raising Productivity Through Structural Reforms in Brazil”, Jens Matthias Arnold e Robert Grundke mostram que o nosso Judiciário é um dos mais caros (como proporção do PIB) e mais ineficientes do mundo.

Há que se destacar que eficiência não se mede por quantidade de casos julgados, como quis fazer parecer o presidente do STF, mas sim com outros critérios objetivos como, por exemplo: tempo de julgamento, consistência nas decisões e formação e consolidação de boas jurisprudências, algo que o próprio Supremo está bem longe de demonstrar.

Aliás, o que temos infelizmente observado em nossa “Corte Máxima” é uma sequência de absurdos que passam por atropelos ao devido processo legal, decisões heterodoxas cujo texto legal é objetivo, mudanças casuísticas de decisões anteriores para atender questões momentâneas, ausência de jurisprudências fortes, que oriente cortes inferiores, envolvimento em ambiente político, ministros falando fora dos autos do processo e até mesmo antecipando posições sobre eventuais casos a serem julgados, dentre outros problemas.

Por óbvio que, como em toda categoria, nas carreiras jurídicas de Estado existem bons profissionais que merecem ser recompensados. Eu mesmo tenho tido experiências com excelentes juízes e outros funcionários públicos que seriam exemplos a serem seguidos em qualquer lugar do mundo.

Mas quando vejo a qualidade de várias decisões, o comportamento de alguns profissionais ou mesmo o envolvimento de determinadas corporações jurídicas com o setor privado (por exemplo, recebimento de financiamento para realização de seminários, pagamento de viagens, etc.) e com o meio político, tenho para mim que precisamos passar o Judiciário a limpo para o bem da nossa sociedade. 

Há sempre a desculpa de que as nossas leis são uma grande parte do problema e que o nosso sistema judiciário, da maneira como foi concebido, é muito ruim, mas nada justifica o que temos presenciado no país. Na realidade, esses argumentos só reforçam a necessidade de irmos a fundo nos problemas e criarmos uma governança mais forte e transparente para a sociedade, inclusive para preservamos os bons profissionais.

E, possivelmente, um bom começo seria criarmos critérios mais rígidos para a escolha dos ministros das cortes superiores, semelhantes, por exemplo, àqueles definidos no artigo 42 da Lei das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019), inclusive no que diz respeito à vedação de indicações definidas no “Art. 8º-A. Com isso, estaríamos blindando os tribunais superiores de qualquer influência política.

Fato é que a PEC do Quinquênio só escancara o quanto nosso sistema judiciário tem sido cada vez mais parte do problema e não das possíveis soluções para o país. Mais do que isso, pelo processo em curso no Congresso, ela mostra que precisamos entender de uma vez por todas que harmonia entre os poderes não pode e não deve ser confundida com “conchavo entre poderes”.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 30/4/2024.”

terça-feira, 23 de abril de 2024

POR QUE A COMPRA DA GOL PELA AZUL PODE NÃO SER TÃO SIMPLES?

Na maioria das vezes, muito otimismo costuma ser um sinal de desinformação

Na última semana começou a circular na imprensa nacional e até internacional que a venda da Gol para a Azul estaria bem encaminhada. Mais do que isso, pelo que eu li, a Azul estaria otimista que “poderia obter a aprovação do órgão regulador - Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) - e da concorrência - Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Tenho para mim que, na maioria das vezes, muito otimismo costuma ser um sinal de desinformação e, portanto, o caminho mais curto para tomar decisões equivocadas. Aliás, bastaria ler um estudo do Cade de 2017, intitulado “Mercado de Transporte Aéreo de Passageiros e Cargas”, para se perceber que a aquisição da Gol não será fácil de ser aprovada. Nesse documento, o órgão foi bem claro em levantar uma série de problemas estruturais no setor, inclusive que justificasse mais preocupação com futuras concentrações econômicas.

Claro que qualquer análise a ser empreendida na área da concorrência deve ser realizada caso a caso, sendo que o nível de concentração, por si só, diz muito pouco sobre os potenciais efeitos anticompetitivos da operação. Mas não há como se negar que a união entre essas duas empresas suscita dúvidas razoáveis.

Em primeiro lugar, pela presença de sobreposição de rotas voadas pelas duas companhias, pela concorrência entre redes a partir de aeroportos distintos e porque as duas oferecerem programas de fidelidade. Esses aspectos constituem pré-condição para se exigir uma análise mais aprofundada do caso.

Ato contínuo, o Cade deverá avaliar a possibilidade de novas firmas entrarem no mercado e garantirem que a aquisição não permitirá às firmas remanescentes elevarem o preço no mercado. No jargão antitruste, isso envolve a avaliação das condições de entrada.

E, nesse aspecto, é fundamental avaliar as oportunidades de demanda disponíveis no mercado para a nova firma vis-à-vis a escala mínima viável necessária para que ela entre em cada rota. E isso implica, inclusive, avaliar quais são as barreiras à entrada observadas no mercado. E nesse caso, vale lembrar que o estudo do Cade aqui citado indica a presença de barreiras legais, de infraestrutura em aeroportos coordenados (congestionados) e altos níveis de investimento para a operação.

Particularmente entendo que a maior barreira à entrada é hoje a ausência de slots (espaço de tempo para pouso e decolagem em aeroportos coordenados) disponíveis em determinados aeroportos que poderiam viabilizar mais rapidamente o surgimento de novas empresas, na medida em que permitiriam rentabilizar mais rapidamente a entrada.

Aliás, tudo indica que a Azul está exatamente atrás dos slots da Gol, podendo até reduzir futuramente o número de voos e rotas de outros aeroportos no qual atua hoje. Nesse sentido, exigir que a Azul abra mão de slots em aeroportos coordenados poderia ser uma das formas de minimizar potenciais efeitos anticompetitivos, inclusive porque há limitações regulatórias para a quantidade detida por empresas, conforme destacado na Resolução da ANAC Nº 682 de 2022. O problema é saber se empresarialmente isso faria sentido.

De toda forma, é bem provável que a Azul levante dois argumentos como contraponto no Cade: (i) o de que a compra criará uma empresa mais eficiente; e (ii) que a Gol pode quebrar, caso não seja adquirida.

Entretanto, essas duas teses podem ter pouco sucesso se os critérios contidos no  Guia de Análise de Concentrações Horizontais do Cade forem seguidos. Esse documento, totalmente aderente à experiência internacional, traça as linhas mestras de análise do órgão.

Nele está claro que a alegação de ganhos de eficiência só será aceita se for específica da operação, ou seja, se as eficiências apresentadas puderem ser obtidas por esforço ou alterações internas da própria empresa, por meio de uma fusão com outra firma que gere menos danos à concorrência ou por quaisquer outras alternativas menos danosas para o mercado, elas não devem ser aceitas.

Em outras palavras, se uma eventual reestruturação da Gol (como tem sido feita) ou mesmo a possibilidade da compra por outra empresa com menos participação no mercado brasileiro gerarem as mesmas eficiências, a operação com a Azul não deverá ser aprovada. E, nessa linha, também já há especulação sobre terceiros interessados na compra da Gol.

Vale lembrar ainda que a aceitação da alegação de ganho de eficiência exige um padrão elevado de prova (não podendo ser meramente especulativa) e não deve refletir apenas ganhos pecuniários para a nova empresa formada, decorrentes de aumento do seu poder de mercado diante de seus consumidores.

Já com relação à alegação da possibilidade de a Gol quebrar (tese da firma falida), a prática internacional e a jurisprudência do Cade têm sido extremamente cautelosas, restringido sua aceitação a casos em que sejam comprovadas, cumulativamente, três condições.

A primeira, que a empresa sairia do mercado ou não poderia cumprir suas obrigações financeiras em decorrência de suas dificuldades econômicas e financeiras. A segunda, que os ativos da empresa sairiam do mercado, reduzindo a oferta, elevando ainda mais o nível de concentração do mercado e diminuindo o bem-estar econômico. E a terceira, que já tenham sido empreendidos esforços na busca de alternativas com menos danos à concorrência (por exemplo, por meio de compradores alternativos ou de um processo de recuperação judicial), não restando outra solução para a manutenção de suas atividades econômicas.

Em outras palavras, o Cade deveria concluir que os efeitos antitruste decorrentes da reprovação da operação (inclusive da provável falência da empresa) seriam piores que a concentração gerada pela operação, sendo que o ônus da prova recairá sobre a Azul. E isso não será uma tarefa fácil, principalmente porque a Gol ainda está em processo de recuperação judicial sem que ainda saibamos onde isso a levará.

Vale lembrar ainda que tanto a Gol como a Azul apresentam hoje um nível de alavancagem (endividamento) bem elevado. E, neste caso, far-se-ia necessário se perguntar se uma união entre as duas não criará uma firma do setor aéreo “grande demais para quebrar”, que exigirá uma intervenção de salvamento estatal com um custo muito elevado para toda a sociedade.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/4/2024.”

terça-feira, 26 de março de 2024

DEBÊNTURES INCENTIVADAS: O QUE ESTÁ POR TRÁS DAS RESTRIÇÕES?

Debêntures incentivadas são um instrumento financeiro que permite às empresas captar recursos a um custo menor

Nos últimos dias, começou a aparecer nos principais portais econômicos do país, notícia de que o governo pretende restringir o uso das denominadas debêntures incentivadas. Do quanto pude ler, seriam dois tipos de restrições.

A primeira, seria a limitação do uso deste instrumento por setores que têm apresentado uma rentabilidade maior, particularmente o de óleo e gás. A principal justificativa estaria na necessidade de direcionar esses recursos para outros setores que teriam maior necessidade de financiamento barato, como os de energias renováveis, saneamento e linhas de transmissão de energia elétrica.

Já a segunda medida envolveria a restrição à utilização do dinheiro obtido para pagamento de outorgas. Neste caso, o objetivo seria reduzir a competição nos leilões para baixar o valor da outorga e, consequentemente, o preço das tarifas para o consumidor.

Para entender melhor o que está em discussão, devemos lembrar que as debêntures incentivadas são um instrumento financeiro que permite às empresas captar recursos a um custo menor, com objetivo de financiar projetos de infraestrutura. Em grande parte, essa vantagem está associada ao fato que os compradores desse papel (os investidores) contam com isenção ou redução de Imposto de Renda sobre os lucros obtidos.

Em última instância, esses recursos acabam por reduzir o custo do investimento (CAPEX) das empresas, fato que se reflete, por si só, em tarifas potencialmente mais baixas para o consumidor. No fundo, custo a acreditar que as informações divulgadas partiram de dentro do governo, pelo primarismo dos argumentos apresentados.

A concorrência por recursos financeiros não se dá unicamente entre setores que podem emitir debêntures para infraestrutura. Poupadores e investidores olham todas as oportunidades do mercado e escolhem aquelas que apresentarem a melhor combinação risco e retorno esperado, dadas suas preferências. E isso nos leva a duas conclusões.

A primeira é a de que tornar menos atrativo as debêntures de dado setor não implica automaticamente a migração desses investimentos para debêntures de outros setores que o governo deseja. Já a segunda conclusão é a de que, para investir em setores de maior risco, o investidor acaba exigindo retornos maiores. E essa pode ser a razão de debêntures de alguns setores gerarem uma rentabilidade maior do que a de outros. Ou seja, a diferença de rentabilidade pode ser apenas o reflexo de diferentes riscos incorridos.

Mas para além dessas questões, o mercado de capital tende a precificar o risco de empréstimo de maneira distinta, a depender do tamanho da empresa que demanda recursos. Neste contexto, empresas menores podem ter mais dificuldade para obter financiamento mais barato. E nessas condições, eliminar uma fonte mais barata de capital pode representar menor capacidade competitiva para as empresas menores, fortalecendo o poder de mercado das grandes, com reflexo sobre o preço praticado ao consumidor final. Esta é uma questão a se pensar no caso do setor de óleo e gás no Brasil.

No que tange à restrição ao uso do recurso captado com debênture incentivada em leilões, os argumentos fazem menos sentido ainda. Logo de partida, a questão posta é como diferenciar o dinheiro obtido via debêntures de outros recursos que entram no caixa da empresa? E se o primeiro for, de fato, direcionado a investimentos e os demais assim liberados para pagamento da outorga?

O cerne da questão é que associar o valor de outorga à tarifa praticada não tem o mínimo sentido. Devemos entender que a lógica de um leilão competitivo de maior valor de outorga é a de que o vencedor deve ser aquele que está disposto a pagar mais pelo direito de prestar um dado serviço; e, como externalidade positiva, o Estado acaba arrecadando mais recursos para atender às demais demandas da sociedade.

Mais do que isso, o valor de outorga mínimo, ou mesmo a outorga efetivamente paga pelo privado, não deve entrar no processo de precificação do negócio (denominado valuation). Ao contrário, ela representa o próprio valor do negócio, sendo o resultado de uma modelagem financeira que leva em conta as receitas estimadas – inclusive a tarifa prevista - e todos os custos envolvidos, inclusive o de capital. Dito de outra forma, a tarifa é parte das variáveis que definem o valor da outorga, mas o inverso não ocorre.  

Em última instância, a tarifa inicial já estará definida no processo de modelagem e a regra de reajuste dependerá do modelo regulatório definido pela agência reguladora no edital do leilão. Neste sentido, em um ambiente regulatório adequado, o valor da outorga paga pelo privado não afeta a tarifa inicial e muito menos deve justificar qualquer solicitação de reequilíbrio econômico-financeiro do negócio, seja ele ordinário ou extraordinário, que implique reajuste tarifário.

Por outro lado, alterar as regras das debêntures incentivadas implicará, sim, a elevação do custo do capital, cuja consequência será o aumento da tarifa definida inicialmente, a redução da outorga paga ou um mix das duas coisas.

Se a intenção do governo fosse realmente reduzir as tarifas, haveria outras formas, tal como a mudança para um leilão do tipo “menor tarifa” (com os problemas subjacentes que carrega) combinada com aperfeiçoamento de regras de competição dos modelos de leilões adotados atualmente.

Fato é que de todos os argumentos que apareceram na imprensa até o momento sobre eventuais restrições às emissões e à utilização de debêntures incentivadas, o único que teria algum sentido lógico é o de que, mais uma vez, o nosso  Ministro da Fazenda está passeando para todos os cantos com o pires na mão buscando arrecadar mais recursos para fazer frente às demandas de gastos do  presidente Lula e de nossos congressistas.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/3/2024.”

terça-feira, 19 de março de 2024

LULA ACUSA O MERCADO DE DINOSSAURO VORAZ, MAS FAZ UM GOVERNO JURÁSSICO

Mesmo quando acerta na direção, o governo Lula erra na forma de atuação

Na última semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva  mais uma vez criticou genericamente o mercado financeiro em entrevista concedida ao SBT por conta da reação ao não pagamento de dividendos extraordinários da Petrobras. Lula afirmou que o mercado é um “rinoceronte, um dinossauro voraz, que quer tudo para ele e nada para o povo”.

Interessante perceber que essa fala veio em um momento de perda acentuada de popularidade do presidente. Não por outra razão, ele resolveu chamar a imprensa nesta segunda-feira, dia 18, para passar um pito pela ausência de divulgação do que ele considera serem seus feitos para recuperar a economia neste primeiro ano de governo.

O grande problema é que os fatos mostram um governo jurássico, com ideias retrógradas e medidas que há muito já se provaram equivocadas. Mais do que isso, guiado por uma convicção desconectada da realidade de que é um semideus, salvador do mundo e protetor dos fracos e oprimidos, o presidente tem se afastado de parceiros comerciais importantes e desestimulado investimentos produtivos por parte do setor privado.

E a pior de suas convicções (considerando que ele tenha de fato boas intenções) é a crença de que um Estado empreendedor sempre é capaz de criar riqueza na economia. Talvez por isso queira retomar a Eletrobrás do setor privado, controlar a Vale e usar a Petrobras como motor de investimentos no país. Só que infelizmente isso não é verdade.

Na realidade, o próprio governo do PT já nos provou que este tipo de investimento acaba sendo guiado por objetivos políticos, sendo pouco eficiente, totalmente suscetível à captura por grupos de interesse ou guiado pela corrupção. E pior, deixa como herança para a sociedade, dívidas elevadas e nenhuma riqueza. Basta lembrar de “mensalões” e “petrolões” da vida.

Em uma linha muito similar, o presidente tem insistido em medidas protecionistas, travestidas depolítica industrial, como o caso recente do setor automobilístico, uma de suas bases políticas. Aliás, esse setor receberá incentivos fiscais de aproximadamente R$ 20 bilhões até 2028. A pretexto de estimular investimentos e produzir carros menos poluentes, o resultado será o mesmo de programas como o Inovar-Auto, qual seja: restrição à concorrência e preços elevados para o consumidor.

E o pior é que o presidente tem falado em outros setores a serem beneficiados por este tipo de política pública, como naval, cujo histórico é deplorável, e mostra absurdos como a própria criação da Sete Brasil, que, em junho de 2016, entrou em recuperação judicial indicando um endividamento de 19,3 bilhões de dólares.

No fundo, o plano “Nova Indústria Brasil”, anunciado em janeiro deste ano, repete em larga escala erros do passado, com medidas que passam pelo uso de compras governamentais, requisitos de conteúdo local, empréstimos, subvenções, investimento público, créditos tributários e participação acionária (provavelmente do BNDES, que se tornou uma fábrica de monopólios durante os governos do PT).

Também temos observado propostas populistas e intervencionistas, como o programa Voa Brasil, que prevê passagens a R$ 200,00 para aposentados, pensionistas e estudantes de baixa renda, e o projeto de regulação de motoristas de aplicativos (PLP 12/2024). No primeiro caso, se levado à frente, o que o governo fará será criar um subsídio cruzado entre passageiros.

Já no caso do projeto de aplicativos, a falta de entendimento mínimo sobre o modelo de negócio utilizado levará, na melhor das hipóteses, à restrição do tamanho desse mercado. Isto porque as obrigações impostas elevarão os custos que, em alguma medida, serão repassados ao consumidor, que, por sua vez, reduzirá a demanda nesses mercados.

Mesmo quando acerta na direção, o governo Lula erra na forma de atuação. É fato que precisamos distribuir renda no país, mas simplesmente retornar com a política de elevações de salário-mínimo acima da inflação, sem considerar os ganhos de produtividade da economia, só acelerará a quebra dos municípios (cujas finanças estão debilitadas) e provocará no futuro aumento de inflação, gerando um efeito contrário ao esperado.

Da mesma forma, não há dúvida que precisamos investir em educação, mas a prioridade deveria estar nos ensinos fundamental, médio e até no técnico. Sair distribuindo recursos para alunos estudarem em universidades particulares de quarta ou quinta linha, que não agregam nada ou muito pouco em termos de conhecimento e capacidade laboral, equivale a simplesmente criar um “bolsa empresário para o setor de educação”.

E pior, os formados tendem a não conseguir gerar renda para pagar eventuais dívidas contraídas, como aconteceu no caso do Fies, que deixou um rombo de R$ 55 bilhões para o Estado. No mínimo, seria necessário estabelecer critérios rígidos de qualidade de ensino exigido, para que as faculdades particulares acessem esse recurso público.

Tivemos também um anúncio recente de que o governo pretende investir na expansão e interiorização do ensino técnico e profissionalizante. Mas sem um plano bem definido (com avaliação adequada do que o mercado demanda, objetivos bem delineados, a maneira de alcançá-los e uma boa gestão) também correremos o risco de transformar esse dinheiro simplesmente em um “bolsa empreiteiro”, com obras espalhadas por todo o país, sem professores e infraestrutura adequada.

Fato é que o desperdício de recursos e a ineficiência têm sido a marca dos seguidos governos do PT.

E dessa forma não há recursos que cheguem para contemplar a megalomania do nosso presidente, que insiste em jogar dinheiro fora com medidas que se mostraram totalmente equivocadas no passado.

Não por outra razão o ministro da fazenda, Fernando Haddad, tem corrido com o pires na mão para todos os lugares, objetivando aumentar ainda mais a nossa já elevada carga tributária. A dúvida que fica é se não seria Lula um tiranossauro rex voraz, que extrai, direta ou indiretamente, recursos da sociedade e do setor privado para contemplar alguns poucos beneficiários de determinados grupos de interesse escolhidos a dedo por ele.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 19/3/2024.”