Presidente só demonstra que não lida bem com organizações forjadas e consolidadas em um ambiente democrático
Um dia antes da reunião do Comitê de Política Monetária
(Copom), que decidiu pela manutenção da taxa de juros Selic em 10,5%, o
presidente Lula deu uma entrevista atacando ferozmente
o presidente do Banco Central do Brasil (Bacen), Roberto Campos, e a decisão
anterior do Copom. Infelizmente, essa foi só mais uma das tantas vezes de um
longo histórico de ataques a instituições e organizações democráticas no país.
No caso em particular, em que pese o erro de Roberto
Campos em se misturar com o universo político em São Paulo e ter votado com uma
camisa amarela nas últimas eleições, estando investido do cargo de presidente
do Bacen, os argumentos de Lula são, no mínimo, risíveis e não se sustentam sob
um escrutínio mínimo de sua fala.
Em primeiro lugar, porque Roberto Campos tem apenas um
voto dentre os nove que decidem, ou seja, ele sozinho não tem qualquer poder de
decisão. Em segundo, porque fosse verdade a tese da posição política do
presidente do Bacen, ele teria votado contra a elevação dos juros durante o
governo Bolsonaro, principalmente às vésperas das últimas eleições para
presidente.
Em terceiro, ao contrário do que o Presidente da República
afirmou, não estamos hoje com a taxa de juros real mais elevada dos últimos
tempos. Durante os dois primeiros governos Lula, o Bacen, com Henrique de
Campos Meirelles, manteve os juros reais bem mais elevados do que hoje por um
bom período. E, naquele momento, as finanças públicas não estavam tão
debilitadas como agora. Assim, o prêmio de risco para emprestar para o setor
público hoje é maior do que boa parte daquele período, o que certamente impacta
o nível de juros atualmente fixado.
Em quarto lugar, porque o cenário internacional ainda está
bastante nebuloso, o que indica que, neste momento, qualquer tentativa de
forçar a queda da taxa de juros poderá implicar mais saída de capital do país,
com o agravamento da depreciação cambial e impacto sobre a inflação futura.
Em quinto, sob o regime de metas de inflação, o que
importa para efeito de decisão de qual deve ser a taxa de juros primária é a
expectativa de inflação futura e não a inflação passada. E, nesse ponto, dado o
cenário incerto gerado por uma política fiscal totalmente expansionista e uma
série de declarações irresponsáveis do nosso Presidente da República, não há
como ancorar as expectativas de inflação e reduzir os prêmios de risco dos
ativos financeiros.
Em realidade, a fala do Presidente é acima de tudo a prova
de quão correta foi a decisão de dar independência decisória ao Banco Central,
que, ao fazer o seu trabalho de controlar a inflação, tem protegido a
sustentabilidade do próprio governo Lula. Ao agir de maneira infantil,
pressionando pela saída do atual presidente do Bacen, Lula só demonstra que não
lida bem com organizações forjadas e consolidadas em um ambiente democrático,
cuja atuação nada difere das melhores práticas internacionais.
Aliás, este não é o primeiro episódio de agressão
institucional de Lula. Para quem não lembra, em 2004, o então presidente da
Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Luiz Guilherme Schymura, apesar
de ter mandato até 2005, foi retirado do cargo de maneira ilegal e arbitrária
apenas porque queria fazer valer o reajuste firmado em contratos com as
empresas de Telecomunicações.
Na época, o reajuste deveria seguir o IGP-DI, que havia
subido muito pelo impacto derivado da desvalorização cambial do ano anterior
(2003), associada ao medo da vitória do então candidato Lula, dadas as suas
falas durante a campanha eleitoral de 2002. O fim dessa história foi a
substituição do presidente da Anatel por um sindicalista do setor, o engenheiro
eletricista Pedro Jaime Ziller, e o não cumprimento dos contratos de reajustes.
Aparentemente, não passaremos por situação semelhante no
caso atual do Banco Central por duas razões. Em primeiro lugar, Lula já não tem
mais a mesma força política que tinha naquela época, quando passava como um
trator por cima do que bem entendesse. Em segundo, qualquer cálculo político
mostra que Lula teria muito mais a perder se atropelasse o Bacen de hoje.
Possivelmente essa última seja a razão mais importante.
E é fácil entender o porquê. Se lembrarmos de uma pesquisa
realizada pelo Datafolha no ano passado, 80% dos entrevistados diziam entender
que Lula agia bem ao pressionar pela queda dos juros, ou seja, existe uma
percepção da população, em geral, que a redução da taxa de juros é muito mais
uma vontade política do que uma questão técnica.
Nessa linha, é muito cômodo para o atual Presidente criar
um “inimigo imaginário” da nação, no melhor estilo “a culpa é minha e eu coloco
em quem eu quiser”. Traduzindo, “dado que eu não quero ajustar as contas
públicas por razões políticas, eu transfiro a culpa do crescimento limitado da
economia para o meu inimigo imaginário; no caso, a política monetária correta
executada pelo atual Bacen.
Essa estratégia também tem a vantagem de manter um
“inimigo imaginário” do país associado ao Bolsonaro em ano eleitoral, sabendo
que, na virada do ano, o atual Presidente poderá escolher os novos diretores
que, em conjunto com os já indicados por ele recentemente, serão os
responsáveis pela condução da política monetária no próximo ano.
O único problema é que os agentes econômicos já estão
precificando o que vem pela frente. Dólar, juros futuros, bolsa de valores e
até mesmo as expectativas de inflação não estão dando bons sinais, ainda mais
quando se olha para as perspectivas das contas públicas.
Neste contexto, colocar em dúvida a independência e
sustentabilidade do Banco Central, construídas arduamente em um ambiente
democrático, é o mesmo que questionar as “regras do jogo” no meio da partida,
gerando mais incerteza sobre a rentabilidade futura de eventuais investimentos
a serem realizados no país.
Lula precisa definitivamente entender que a vitória em uma eleição presidencial não lhe confere um poder ditatorial para conduzir o país da forma como bem entender, ignorando todas as instituições construídas ao longo do tempo, que representam as “regras do jogo” (principalmente as jurídicas formais) que regem o comportamento dos agentes econômicos e estruturam as interações negociais na sociedade.
“Texto publicado originalmente no portal IG em 25/6/2024.”