Na maioria das vezes, muito otimismo costuma ser um sinal de desinformação
Na última semana começou a circular na imprensa nacional e
até internacional que a venda da Gol para a Azul estaria bem encaminhada. Mais
do que isso, pelo que eu li, a Azul estaria otimista que “poderia obter a
aprovação do órgão regulador - Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) - e da
concorrência - Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Tenho para
mim que, na maioria das vezes, muito otimismo costuma ser um sinal de
desinformação e, portanto, o caminho mais curto para tomar decisões equivocadas.
Aliás, bastaria ler um estudo do Cade de 2017, intitulado “Mercado de Transporte Aéreo de Passageiros e Cargas”, para se
perceber que a aquisição da Gol não será fácil de ser aprovada. Nesse
documento, o órgão foi bem claro em levantar uma série de problemas estruturais
no setor, inclusive que justificasse mais preocupação com futuras concentrações
econômicas.
Claro que qualquer análise a ser empreendida na área da
concorrência deve ser realizada caso a caso, sendo que o nível de concentração,
por si só, diz muito pouco sobre os potenciais efeitos anticompetitivos da
operação. Mas não há como se negar que a união entre essas duas empresas
suscita dúvidas razoáveis.
Em primeiro lugar, pela presença de sobreposição de
rotas voadas pelas duas companhias, pela concorrência entre redes a partir de
aeroportos distintos e porque as duas oferecerem programas de fidelidade. Esses
aspectos constituem pré-condição para se exigir uma análise mais aprofundada do
caso.
Ato contínuo, o Cade deverá avaliar a possibilidade de
novas firmas entrarem no mercado e garantirem que a aquisição não permitirá às
firmas remanescentes elevarem o preço no mercado. No jargão antitruste, isso
envolve a avaliação das condições de entrada.
E, nesse aspecto, é fundamental avaliar as oportunidades
de demanda disponíveis no mercado para a nova firma vis-à-vis a escala mínima
viável necessária para que ela entre em cada rota. E isso implica, inclusive,
avaliar quais são as barreiras à entrada observadas no mercado. E nesse caso,
vale lembrar que o estudo do Cade aqui citado indica a presença de barreiras
legais, de infraestrutura em aeroportos coordenados (congestionados) e altos
níveis de investimento para a operação.
Particularmente entendo que a maior barreira à entrada é
hoje a ausência de slots (espaço de tempo para pouso e decolagem em
aeroportos coordenados) disponíveis em determinados aeroportos que poderiam
viabilizar mais rapidamente o surgimento de novas empresas, na medida em que
permitiriam rentabilizar mais rapidamente a entrada.
Aliás, tudo indica que a Azul está exatamente atrás dos slots
da Gol, podendo até reduzir futuramente o número de voos e rotas de outros
aeroportos no qual atua hoje. Nesse sentido, exigir que a Azul abra mão de slots
em aeroportos coordenados poderia ser uma das formas de minimizar potenciais
efeitos anticompetitivos, inclusive porque há limitações regulatórias para a
quantidade detida por empresas, conforme destacado na Resolução da ANAC Nº 682
de 2022. O problema é saber se empresarialmente isso faria sentido.
De toda forma, é bem provável que a Azul levante dois
argumentos como contraponto no Cade: (i) o de que a compra criará uma empresa
mais eficiente; e (ii) que a Gol pode quebrar, caso não seja adquirida.
Entretanto, essas duas teses podem ter pouco sucesso se os
critérios contidos no Guia de Análise de Concentrações Horizontais do Cade forem
seguidos. Esse documento, totalmente aderente à experiência internacional,
traça as linhas mestras de análise do órgão.
Nele está claro que a alegação de ganhos de eficiência só
será aceita se for específica da operação, ou seja, se as eficiências
apresentadas puderem ser obtidas por esforço ou alterações internas da própria
empresa, por meio de uma fusão com outra firma que gere menos danos à
concorrência ou por quaisquer outras alternativas menos danosas para o mercado,
elas não devem ser aceitas.
Em outras palavras, se uma eventual reestruturação da Gol
(como tem sido feita) ou mesmo a possibilidade da compra por outra empresa com
menos participação no mercado brasileiro gerarem as mesmas eficiências, a
operação com a Azul não deverá ser aprovada. E, nessa linha, também já há
especulação sobre terceiros interessados na compra da Gol.
Vale lembrar ainda que a aceitação da alegação de ganho de
eficiência exige um padrão elevado de prova (não podendo ser meramente
especulativa) e não deve refletir apenas ganhos pecuniários para a nova empresa
formada, decorrentes de aumento do seu poder de mercado diante de seus
consumidores.
Já com relação à alegação da possibilidade de a Gol
quebrar (tese da firma falida), a prática internacional e a jurisprudência do
Cade têm sido extremamente cautelosas, restringido sua aceitação a casos em que
sejam comprovadas, cumulativamente, três condições.
A primeira, que a empresa sairia do mercado ou não poderia
cumprir suas obrigações financeiras em decorrência de suas dificuldades
econômicas e financeiras. A segunda, que os ativos da empresa sairiam do
mercado, reduzindo a oferta, elevando ainda mais o nível de concentração do
mercado e diminuindo o bem-estar econômico. E a terceira, que já tenham sido
empreendidos esforços na busca de alternativas com menos danos à concorrência
(por exemplo, por meio de compradores alternativos ou de um processo de recuperação
judicial), não restando outra solução para a manutenção de suas atividades
econômicas.
Em outras palavras, o Cade deveria concluir que os efeitos
antitruste decorrentes da reprovação da operação (inclusive da provável
falência da empresa) seriam piores que a concentração gerada pela operação,
sendo que o ônus da prova recairá sobre a Azul. E isso não será uma tarefa
fácil, principalmente porque a Gol ainda está em processo de recuperação
judicial sem que ainda saibamos onde isso a levará.
Vale lembrar ainda que tanto a Gol como a Azul apresentam
hoje um nível de alavancagem (endividamento) bem elevado. E, neste caso,
far-se-ia necessário se perguntar se uma união entre as duas não criará uma
firma do setor aéreo “grande demais para quebrar”, que exigirá uma intervenção
de salvamento estatal com um custo muito elevado para toda a sociedade.
“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/4/2024.”
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