sábado, 2 de abril de 2022

APP DE DELIVERY DA PREFEITURA DO RIO PODE ACABAR PREJUDICANDO O CONSUMIDOR

 

No último dia 28 de março, deparei-me com uma notícia na qual o Secretário Municipal de Fazenda e Planejamento, Pedro Paulo, divulgou que foi colocado no ar um App de delivery de comida pela Prefeitura do Rio, o “Valeu”.

A justificativa para isso seria que, com a nova plataforma, os ganhos para entregadores aumentariam e os restaurantes cadastrados teriam seus custos de entrega reduzidos. E isso ocorreria por meio de cortes das taxas que são cobradas dos restaurantes pelas plataformas de delivery.

A primeira coisa que me ocorreu quando li essa matéria foi que a Prefeitura do Rio, da noite para o dia, tinha resolvido todos os problemas que lhe cabem. Aparentemente, a educação na cidade está em um nível elevadíssimo, a saúde é de primeira qualidade, não existe mais déficit habitacional e o sistema de transporte público e viário está bem muito resolvido e integrado, não?

Mas enfim, fui procurar saber mais sobre o assunto e descobri que hoje já existe uma plataforma da prefeitura do Rio para usuários de táxis, que inclusive dá desconto, a “Taxi.Rio”. Provavelmente tenha sido essa a inspiração. Mesmo reticente com relação a esse serviço, entendo que, ao menos neste caso, existe uma relação mais próxima das funções da Prefeitura.

Na realidade, existe uma grande diferença entre criar uma plataforma para dinamizar e até gerar concorrência na prestação de um serviço que já é regulado pela própria Prefeitura e dar um passo maior, desenvolvendo uma outra plataforma que interfere diretamente em relações de serviços tipicamente privados.

Para entender meu ponto, vou partir da justificava supostamente apresentada pelo secretário e economista Pedro Paulo no texto que li. Na sua visão, haveria uma falha de mercado a ser corrigida pela Prefeitura do Rio. Sob o aspecto econômico, existem 4 falhas de mercado que justificariam a intervenção do Estado, mas para efeito do tema aqui exposto, apenas duas nos interessam.

A primeira é a necessidade de atuação do Estado para prover os chamados bens (ou serviços) públicos no sentido estritamente econômico. E este não é um conceito trivial, uma vez que traz consigo duas hipóteses econômicas subjacentes (não rivalidade no consumo e não exclusão), pré-requisitos para se definir um bem público e que são raramente encontradas.

Mas de maneira muito simplificada, bens (ou serviços) públicos são aqueles que são de interesse de toda a sociedade, mas o setor privado não tem incentivo para provê-los, uma vez que não consegue criar formas de obter lucro com eles. São exemplos típicos justiça, segurança, iluminação, dentre outros.

Nesses casos, cabe ao Estado constituí-los diretamente ou coordenar o processo de sua constituição pelo setor privado, mediante a criação de mecanismos que permitam a obtenção de um retorno razoável. No caso de aplicativos de delivery, eles já existem, o que por si só indica que não estamos tratando de um caso típico de bem público.

A segunda falha de mercado seria o uso de um eventual poder de mercado por parte das empresas prestadoras do serviço em questão, aplicativos de delivery. No caso, parece que o secretário considera que essas empresas têm achatado a margem dos restaurantes, de um lado, e pagado um preço abaixo do que seria competitivo para os entregadores de comida.

Não descarto, em princípio, que essas empresas tenham de fato poder de mercado, pois estamos tratando de plataformas que geram efeitos que dificultam a entrada de novos players. Aliás, a entrada e saída do Uber desse mercado é um exemplo.

Também não desconsidero que essas plataformas podem estar usando seu poder de mercado para comprimir as margens de restaurantes e pagar menos do que seria “razoável” para entregadores. Mas o ponto não é esse. O ponto é que não compete à Prefeitura do Rio resolver esse problema, mas sim ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Aliás, hoje já há no Cade um processo administrativo aberto contra o iFood por utilização de cláusulas de exclusividade com restaurantes mais demandados, e com o potencial de restringir a concorrência e entrada de novas plataformas de delivery nesse mercado. Se a questão for realmente grave como sugere o secretário, caberia ao órgão de defesa de concorrência acelerar o processo de análise e punição.

De toda forma, a atuação da Prefeitura, além de não ser capaz de resolver esse problema, poderia introduzir uma falha de Estado neste processo, em vez de corrigir uma falha de governo.

A entrada nesse mercado não é nada trivial e envolve custos fixos elevados, inclusive destinados a investimentos em inovações. Fora isso, existem custos de montagem de rede, criação de cardápios mais direcionados, de intermediação de “conflitos” entre restaurante e cliente, dentre outros.

E será que a Prefeitura está preparada para lidar com tudo isso? Será que saberá precificar os custos desses serviços, inclusive o de oportunidade de deixar de se dedicar a outras áreas próprias da administração pública?

É muito fácil avançar sobre uma área do setor privado definindo preços que nada têm a ver com os reais custos enfrentados no setor, uma vez que a Prefeitura sempre poderá subsidiar seus custos com o orçamento público. Só que isso infelizmente altera os incentivos de mercado.

A questão é que, no limite, a atuação da Prefeitura poderá reduzir a atratividade para a entrada de novas empresas de plataformas de delivery, que, essas sim, poderiam gerar uma competição saudável e melhorar a situação no mercado para restaurantes, entregadores e até consumidores.

Aliás, nossa história está cheia de casos nos quais o Estado resolveu criar empresas públicas que só distorceram os sinais de mercado, afastaram investimentos privados e trouxeram efeitos ruins para toda a sociedade. Resta saber se a Prefeitura do Rio irá trilhar esse mesmo caminho.

“Texto publicado originalmente no UOL em 2/4/2022.”

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