No último dia 28 de março, deparei-me com
uma notícia na qual o Secretário Municipal de Fazenda e Planejamento, Pedro
Paulo, divulgou que foi colocado no ar um App de delivery de comida
pela Prefeitura do Rio,
o “Valeu”.
A justificativa para isso seria que, com a
nova plataforma, os ganhos para entregadores aumentariam e os restaurantes
cadastrados teriam seus custos de entrega reduzidos. E isso ocorreria por meio
de cortes das taxas que são cobradas dos restaurantes pelas plataformas de delivery.
A primeira coisa que me ocorreu quando li
essa matéria foi que a Prefeitura do Rio, da noite para o dia, tinha resolvido
todos os problemas que lhe cabem. Aparentemente, a educação na cidade está em
um nível elevadíssimo, a saúde é de primeira qualidade, não existe mais déficit
habitacional e o sistema de transporte público e viário está bem muito
resolvido e integrado, não?
Mas enfim, fui procurar saber mais sobre o
assunto e descobri que hoje já existe uma plataforma da prefeitura do Rio para
usuários de táxis, que inclusive dá desconto, a “Taxi.Rio”. Provavelmente tenha
sido essa a inspiração. Mesmo reticente com relação a esse serviço, entendo
que, ao menos neste caso, existe uma relação mais próxima das funções da
Prefeitura.
Na realidade, existe uma grande diferença
entre criar uma plataforma para dinamizar e até gerar concorrência na prestação
de um serviço que já é regulado pela própria Prefeitura e dar um passo maior,
desenvolvendo uma outra plataforma que interfere diretamente em relações de
serviços tipicamente privados.
Para entender meu ponto, vou partir da
justificava supostamente apresentada pelo secretário e economista Pedro Paulo
no texto que li. Na sua visão, haveria uma falha de mercado a ser corrigida
pela Prefeitura do Rio. Sob o aspecto econômico, existem 4 falhas de mercado
que justificariam a intervenção do Estado, mas para efeito do tema aqui
exposto, apenas duas nos interessam.
A primeira é a necessidade de atuação do
Estado para prover os chamados bens (ou serviços) públicos no sentido
estritamente econômico. E este não é um conceito trivial, uma vez que traz
consigo duas hipóteses econômicas subjacentes (não rivalidade no consumo e não
exclusão), pré-requisitos para se definir um bem público e que são raramente
encontradas.
Mas de maneira muito simplificada, bens (ou
serviços) públicos são aqueles que são de interesse de toda a sociedade, mas o
setor privado não tem incentivo para provê-los, uma vez que não consegue criar
formas de obter lucro com eles. São exemplos típicos justiça, segurança,
iluminação, dentre outros.
Nesses casos, cabe ao Estado constituí-los
diretamente ou coordenar o processo de sua constituição pelo setor privado,
mediante a criação de mecanismos que permitam a obtenção de um retorno
razoável. No caso de aplicativos de delivery, eles já existem, o que por
si só indica que não estamos tratando de um caso típico de bem público.
A segunda falha de mercado seria o uso de
um eventual poder de mercado por parte das empresas prestadoras do serviço em
questão, aplicativos de delivery. No caso, parece que o secretário
considera que essas empresas têm achatado a margem dos restaurantes, de um
lado, e pagado um preço abaixo do que seria competitivo para os entregadores de
comida.
Não descarto, em princípio, que essas
empresas tenham de fato poder de mercado, pois estamos tratando de plataformas
que geram efeitos que dificultam a entrada de novos players. Aliás, a
entrada e saída do Uber desse mercado é um exemplo.
Também não desconsidero que essas
plataformas podem estar usando seu poder de mercado para comprimir as margens
de restaurantes e pagar menos do que seria “razoável” para entregadores. Mas o
ponto não é esse. O ponto é que não compete à Prefeitura do Rio resolver esse
problema, mas sim ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Aliás, hoje já há no Cade um processo
administrativo aberto contra o iFood por utilização de cláusulas de
exclusividade com restaurantes mais demandados, e com o potencial de restringir
a concorrência e entrada de novas plataformas de delivery nesse mercado.
Se a questão for realmente grave como sugere o secretário, caberia ao órgão de
defesa de concorrência acelerar o processo de análise e punição.
De toda forma, a atuação da Prefeitura,
além de não ser capaz de resolver esse problema, poderia introduzir uma falha
de Estado neste processo, em vez de corrigir uma falha de governo.
A entrada nesse mercado não é nada trivial
e envolve custos fixos elevados, inclusive destinados a investimentos em
inovações. Fora isso, existem custos de montagem de rede, criação de cardápios
mais direcionados, de intermediação de “conflitos” entre restaurante e cliente,
dentre outros.
E será que a Prefeitura está preparada para
lidar com tudo isso? Será que saberá precificar os custos desses serviços,
inclusive o de oportunidade de deixar de se dedicar a outras áreas próprias da
administração pública?
É muito fácil avançar sobre uma área do
setor privado definindo preços que nada têm a ver com os reais custos
enfrentados no setor, uma vez que a Prefeitura sempre poderá subsidiar seus
custos com o orçamento público. Só que isso infelizmente altera os incentivos
de mercado.
A questão é que, no limite, a atuação da
Prefeitura poderá reduzir a atratividade para a entrada de novas empresas de
plataformas de delivery, que, essas sim, poderiam gerar uma competição
saudável e melhorar a situação no mercado para restaurantes, entregadores e até
consumidores.
Aliás, nossa história está cheia de casos
nos quais o Estado resolveu criar empresas públicas que só distorceram os
sinais de mercado, afastaram investimentos privados e trouxeram efeitos ruins
para toda a sociedade. Resta saber se a Prefeitura do Rio irá trilhar esse
mesmo caminho.
“Texto publicado originalmente no UOL em 2/4/2022.”
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