Sempre me preocupo em entender a racionalidade das estratégias comerciais das empresas e de seus respectivos modelos de negócio antes de fazer qualquer crítica nas esferas regulatória, concorrencial e na área da defesa do consumidor. Mais do que isso, procuro entender o ambiente mercadológico no qual elas estão inseridas antes de criticá-las.
E
faço isso porque muitas vezes o que aparenta ser um “delito” na esfera
administrativa pode ter por trás justificativas em termos de eficiência
econômica, que acabam por se refletir positivamente para determinados grupos de
consumidores. São exemplos determinados casos de discriminação de preço e de
venda em pacote (como combos no setor de telefonia).
Particularmente,
meu cuidado tende a ser ainda maior em setores como o aéreo, cujas estratégias
de precificação não são triviais e onde o ambiente de atuação encontra um
sem-número de variáveis a serem gerenciadas, como, por exemplo, questões
climáticas e descasamento temporal entre decisão de investimento para elevar a
oferta e efetivação da demanda no mercado.
Nessa
linha, é de conhecimento geral que a pandemia gerou uma forte queda na demanda
nesse mercado, e por mais tempo do que em outros setores. Com isso, os gestores
dessas empresas tiveram que gerenciar, dentre tantos outros, dois aspectos
cruciais.
O
primeiro deles foi ter que decidir quais rotas ainda seriam mantidas e com qual
frequência, uma vez que voar com aviões de passageiros vazios seria a certeza
de elevado prejuízo operacional.
O
segundo, consequência do primeiro, foi como fazer o ajuste de oferta da noite
para o dia, sem que aeronaves fossem definitivamente devolvidas para seus
respectivos fornecedores (empresas de leasing); uma vez que havia a
expectativa de voltar a voar o quanto antes, evitando, inclusive, desempregos.
Claro
que sempre existe alguma margem para adaptação. No caso, muitas empresas aéreas
procuraram renegociar com fornecedores e concentrar seus esforços em
transportar mais carga. Mas mesmo isso não evitou os elevados prejuízos
observados nos momentos mais críticos da pandemia.
Foi
nesse contexto que a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e o próprio
Congresso entenderam a forte crise vivenciada pelo setor e flexibilizaram
algumas regras.
A
primeira delas foi desobrigar as empresas a garantir acomodações ou alimentação
aos passageiros em caso de atraso ou reprogramação de voos por problemas
decorrentes do fechamento de fronteiras ou de aeroportos por determinação de
autoridades, além de reduzir o tempo de antecedência para notificar os
passageiros sobre qualquer alteração para 24 horas (antes era de 72 horas).
A
segunda foi criar um “abono de penalidade’ para as empresas, conferindo maior
tolerância para atraso e cancelamento de slots (direito de pouso e
decolagem) em aeroportos coordenados (com alta demanda e restrição de oferta).
Com isso, o cálculo do índice de regularidade para a manutenção do direito de
uso de slots pelas companhias aéreas foi “afrouxado”.
Na
mesma direção, caminhou a Lei 14.034/2020, ampliando para 12 meses o prazo para
reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de
voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2021,
observada a atualização monetária calculada com base no INPC. Neste caso, a
preocupação foi com o caixa das empresas.
Por
óbvio, todas essas medidas causaram um forte transtorno a nós, consumidores.
Aliás, uma busca no site consumidor.gov mostra que a maior parte de reclamações
no transporte aéreo em 2021 foi apresentada por dificuldade ou atraso para
receber reembolso (25,91%) e cancelamento de voo (11,09%), problemas
diretamente associados às medidas adotadas.
Mas
a questão ao longo da pandemia tem sido escolher entre um mal menor. Permitir a
flexibilização das regras, aceitar as novas regras vigentes, ou impor um
prejuízo ainda maior às empresas, sob o risco de quebrarem e o consumidor ficar
ainda mais desassistido?
No
fundo, o grande desafio para a ANAC e para os órgãos de defesa do consumidor é
entender como calibrar suas decisões. E aí preocupa-me o que aconteceu
principalmente no segundo semestre do ano passado, quando o mercado voltou a
reaquecer e as empresas, mesmo assim, permaneceram cancelando voos e remarcando
horários e até mesmo datas.
Para
o consumidor, constantes cancelamentos e mudanças de voos implicam, muitas
vezes, redefinirem suas viagens de lazer ou compromissos profissionais, que
podem envolver custos não desprezíveis, como aqueles relacionados a alterações
nas reservas em hotéis ou de horários de reuniões (quando possível).
Em
algumas situações, o compromisso pode ser inadiável. Nesses casos, os
consumidores acabam sendo obrigados a comprar novas passagens de outras
companhias, com o preço, algumas vezes, mais elevado do que o pago
inicialmente. De toda forma, no mínimo pode haver o custo de transação
relacionado a novas buscas de dias e horários por voos e hotéis.
Nesse
sentido, o ideal seria que este tipo de comportamento empresarial se limitasse
apenas aos momentos estritamente necessários, de pico da pandemia, quando a
demanda se reduzisse drasticamente e a capacidade de oferta de voos fosse
afetada pela redução do número de funcionários que compõem a tripulação de
bordo acometidos pela doença.
Entender
o momento da pandemia e os problemas vivenciados no setor é fundamental. Mas
evitar eventuais abusos, principalmente aqueles que envolvem transferir
injustificavelmente o risco do negócio para o consumidor, também é função dos
órgãos governamentais.
E
o que tudo indica é que a ANAC e Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor
(Senacon) têm procurado chamar as empresas para dar explicações sobre fatos
ocorridos e problemas vivenciados, em uma linha de regulação mais responsiva
(cooperativa). Resta saber qual será o resultado dessas conversas nos próximos
meses.
“Texto publicado originalmente no portal UOL em 24/1/2022.”
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