segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

AÉREAS ESTÃO EXAGERANDO NOS CANCELAMENTOS E PREJUDICANDO PASSAGEIROS?

Sempre me preocupo em entender a racionalidade das estratégias comerciais das empresas e de seus respectivos modelos de negócio antes de fazer qualquer crítica nas esferas regulatória, concorrencial e na área da defesa do consumidor. Mais do que isso, procuro entender o ambiente mercadológico no qual elas estão inseridas antes de criticá-las.

E faço isso porque muitas vezes o que aparenta ser um “delito” na esfera administrativa pode ter por trás justificativas em termos de eficiência econômica, que acabam por se refletir positivamente para determinados grupos de consumidores. São exemplos determinados casos de discriminação de preço e de venda em pacote (como combos no setor de telefonia).

Particularmente, meu cuidado tende a ser ainda maior em setores como o aéreo, cujas estratégias de precificação não são triviais e onde o ambiente de atuação encontra um sem-número de variáveis a serem gerenciadas, como, por exemplo, questões climáticas e descasamento temporal entre decisão de investimento para elevar a oferta e efetivação da demanda no mercado.

Nessa linha, é de conhecimento geral que a pandemia gerou uma forte queda na demanda nesse mercado, e por mais tempo do que em outros setores. Com isso, os gestores dessas empresas tiveram que gerenciar, dentre tantos outros, dois aspectos cruciais.

O primeiro deles foi ter que decidir quais rotas ainda seriam mantidas e com qual frequência, uma vez que voar com aviões de passageiros vazios seria a certeza de elevado prejuízo operacional.

O segundo, consequência do primeiro, foi como fazer o ajuste de oferta da noite para o dia, sem que aeronaves fossem definitivamente devolvidas para seus respectivos fornecedores (empresas de leasing); uma vez que havia a expectativa de voltar a voar o quanto antes, evitando, inclusive, desempregos.

Claro que sempre existe alguma margem para adaptação. No caso, muitas empresas aéreas procuraram renegociar com fornecedores e concentrar seus esforços em transportar mais carga. Mas mesmo isso não evitou os elevados prejuízos observados nos momentos mais críticos da pandemia.

Foi nesse contexto que a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e o próprio Congresso entenderam a forte crise vivenciada pelo setor e flexibilizaram algumas regras.

A primeira delas foi desobrigar as empresas a garantir acomodações ou alimentação aos passageiros em caso de atraso ou reprogramação de voos por problemas decorrentes do fechamento de fronteiras ou de aeroportos por determinação de autoridades, além de reduzir o tempo de antecedência para notificar os passageiros sobre qualquer alteração para 24 horas (antes era de 72 horas).

A segunda foi criar um “abono de penalidade’ para as empresas, conferindo maior tolerância para atraso e cancelamento de slots (direito de pouso e decolagem) em aeroportos coordenados (com alta demanda e restrição de oferta). Com isso, o cálculo do índice de regularidade para a manutenção do direito de uso de slots pelas companhias aéreas foi “afrouxado”.

Na mesma direção, caminhou a Lei 14.034/2020, ampliando para 12 meses o prazo para reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2021, observada a atualização monetária calculada com base no INPC. Neste caso, a preocupação foi com o caixa das empresas.

Por óbvio, todas essas medidas causaram um forte transtorno a nós, consumidores. Aliás, uma busca no site consumidor.gov mostra que a maior parte de reclamações no transporte aéreo em 2021 foi apresentada por dificuldade ou atraso para receber reembolso (25,91%) e cancelamento de voo (11,09%), problemas diretamente associados às medidas adotadas.

Mas a questão ao longo da pandemia tem sido escolher entre um mal menor. Permitir a flexibilização das regras, aceitar as novas regras vigentes, ou impor um prejuízo ainda maior às empresas, sob o risco de quebrarem e o consumidor ficar ainda mais desassistido?

No fundo, o grande desafio para a ANAC e para os órgãos de defesa do consumidor é entender como calibrar suas decisões. E aí preocupa-me o que aconteceu principalmente no segundo semestre do ano passado, quando o mercado voltou a reaquecer e as empresas, mesmo assim, permaneceram cancelando voos e remarcando horários e até mesmo datas.

Para o consumidor, constantes cancelamentos e mudanças de voos implicam, muitas vezes, redefinirem suas viagens de lazer ou compromissos profissionais, que podem envolver custos não desprezíveis, como aqueles relacionados a alterações nas reservas em hotéis ou de horários de reuniões (quando possível).

Em algumas situações, o compromisso pode ser inadiável. Nesses casos, os consumidores acabam sendo obrigados a comprar novas passagens de outras companhias, com o preço, algumas vezes, mais elevado do que o pago inicialmente. De toda forma, no mínimo pode haver o custo de transação relacionado a novas buscas de dias e horários por voos e hotéis.

Nesse sentido, o ideal seria que este tipo de comportamento empresarial se limitasse apenas aos momentos estritamente necessários, de pico da pandemia, quando a demanda se reduzisse drasticamente e a capacidade de oferta de voos fosse afetada pela redução do número de funcionários que compõem a tripulação de bordo acometidos pela doença.

Entender o momento da pandemia e os problemas vivenciados no setor é fundamental. Mas evitar eventuais abusos, principalmente aqueles que envolvem transferir injustificavelmente o risco do negócio para o consumidor, também é função dos órgãos governamentais.

E o que tudo indica é que a ANAC e Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) têm procurado chamar as empresas para dar explicações sobre fatos ocorridos e problemas vivenciados, em uma linha de regulação mais responsiva (cooperativa). Resta saber qual será o resultado dessas conversas nos próximos meses.

“Texto publicado originalmente no portal UOL em 24/1/2022.”

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