Luiz Marinho diz que, se a Uber quiser sair do Brasil, o 'problema' é da empresa
Na última semana, o atual ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou, durante audiência da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara, que se a Uber quiser sair do país, é um problema da empresa e que outros concorrentes ocupariam o espaço deixado pela empresa.
Pior ainda, sugeriu que os Correios poderiam estudar
“um aplicativo de forma mais humana para trabalhadores que desejassem usar o
aplicativo dos Correios, para poder trabalhar sem a neura do lucro dos
capitalistas, que acontece com Uber, Ifood" etc.
Para além do próprio preconceito demonstrado ao setor
privado, a fala do ministro é carregada de um conteúdo sem precedente de
ignorância no sentido estrito da palavra. Isso porque ele demostrou um total
desconhecimento sobre o modelo de negócio deste tipo de empresa, que envolve
plataformas que atuam em um ambiente denominado, em economia, de mercado de dois ou mais lados.
E esse conceito está bem documentado, por exemplo, em
estudo da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2009. Segundo a
instituição, esses mercados são caracterizados por três elementos.
O primeiro deles é a presença de dois grupos distintos de
“usuários” que dependem uns dos outros de alguma forma e que contam com uma
plataforma para intermediar as relações entre eles. Uma plataforma de dois
lados, por exemplo, fornece, simultaneamente, serviços a esses dois grupos.
No caso específico aqui discutido, a Uber
é a plataforma que coloca em contato motoristas e usuários de transportes. E,
para isso, define um valor a ser pago pelo usuário com base na quantidade
demandada e ofertada neste mercado a cada momento, e cobra um valor do
motorista pelo serviço a ele prestado ao conectá-lo com o usuário transportado
(uma espécie de taxa de desconto).
E essa discussão inicial indica que, longe de haver uma
relação trabalhista entre Uber e motoristas, há sim uma relação de prestação de
serviços por uma plataforma que interliga dois lados do mercado (usuários e
motoristas), cobrando por isso dos motoristas. Note-se que a relação de
trabalho que a Uber guarda de fato é com seus empregados diretos, das várias
áreas dentro de sua empresa, e não com os motoristas.
O segundo elemento apontado pela OCDE é a existência do que se denomina “externalidades
indiretas” entre os grupos que fazem uso da plataforma. Traduzindo, o valor que
cada grupo atribui à plataforma cresce com o número de pessoas conectadas do
outro lado. Assim, uma plataforma será tão mais interessante quanto mais gente
estiver a ela conectada, o que exige um trabalho não trivial de investimentos
constantes na plataforma, de maneira a mantê-la sempre interessante a todos os
envolvidos.
O terceiro elemento é a ausência de neutralidade na
estrutura de preços, ou seja, a escolha entre cobrar mais de um lado ou de
outro do mercado pode afetar a quantidade de transações e, consequentemente, o
lucro e bem-estar da sociedade.
Considerando esses dois últimos aspectos, qualquer
interferência governamental que imponha algum custo adicional à plataforma ou
restrição à sua forma de definição de preços poderá implicar três movimentos. O
primeiro será uma recalibração dos níveis de preço(s) cobrado(s), quando isso
não for limitado. O segundo será um desincentivo a investimentos em inovação. O
terceiro, até mesmo um desincentivo a permanecer no negócio.
Seja qual for o efeito gerado (inclusive podendo ser uma
combinação dos três movimentos acima descritos), o nível de transações se
reduzirá, gerando uma perda para todos os envolvidos. Menos usuários usando a
plataforma, menos corridas, menos recebimento para motoristas e menos lucro
para a plataforma.
No limite, o custo imposto pelo Estado poderá sim
inviabilizar o negócio não só para a Uber mas para outros atuais ou potenciais
concorrentes. Em realidade, a fala do ministro do Trabalho desconsidera esse
efeito, inclusive para os próprios motoristas, exatamente por não entender como
esse mercado funciona.
Também desconsidera os efeitos aos “consumidores” dos
serviços de transporte, seja porque a imposição de custos maiores certamente
elevará diretamente os preços definidos pela Uber, seja porque esse movimento
reduzirá a capacidade das plataformas de competir com os táxis, por exemplo.
Por fim, o ministro erra ainda ao pressupor que os
Correios resolverão o problema. Criar uma plataforma deste tipo envolve
investimentos pesados e constantes em tecnologia, conhecimento de mercado,
atualizações de segurança, melhorias de prestação de serviços, busca por
serviços adicionais, etc.
Isso não é algo trivial e, na melhor das hipóteses, sendo
muito otimista, imporá um custo de oportunidade elevado para uma empresa
estatal que mal consegue dar conta de suas obrigações. Ou seja, desviar o foco
dos Correios de seu core business ("negócio principal", em
tradução livre) só reforça uma visão deturpada da realidade que vivemos hoje,
principalmente em um país com o nível do déficit público vigente.
No fundo, a fala do ministro do Trabalho, seja por razões populistas ou pela total incapacidade de entender do que estamos tratando, foi muito irresponsável. Se levada adiante, criará mais uma fonte de insegurança jurídica para novos investimentos em um momento no qual o país precisa, urgentemente, gerar novos empregos.
“Texto publicado originalmente no portal IG em 10/10/2023.”
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