sexta-feira, 29 de abril de 2022

A CONTA DO ‘DESPACHO GRÁTIS’ DAS BAGAGENS AÉREAS SERÁ PAGA POR TODOS NÓS


Na última terça-feira, dia 26, a Câmara dos Deputados aprovou a Medida Provisória (MP 1089/21) que reformula a legislação sobre aviação civil no Brasil. Apesar de conter alguns aspectos positivos no caminho de reduzir a regulamentação excessiva no setor, essa MP traz também um dispositivo que vai na contramão da lógica econômica e da prática internacional.

Refiro-me, mais precisamente, à emenda da deputada Perpétua Almeida (PC do B/AC), que inclui no Código de Defesa do Consumidor dispositivo proibindo as companhias aéreas de cobrarem qualquer tipo de taxa, em voos nacionais, pelo despacho de bagagens de até 23 kg, e em voos internacionais, pelo despacho de bagagens de até 30 kg.

Vale lembrar que a possibilidade de cobrar em separado por bagagem despachada é algo recente no Brasil, apesar de ser comum há muito tempo na grande maioria dos países. Mais precisamente, essa decisão foi tomada por aqui em 2019. Naquela oportunidade, cheguei a escrever sobre o assunto.

Não tenho como afirmar que a proposta da deputada do PC do B, que foi aprovada por vários deputados, carrega um “Q” de populismo barato ou é apenas fruto de uma compreensão totalmente equivocada sobre economia e, particularmente, sobre o setor.

Mas o fato é que essa decisão, ao invés de reduzir os preços para os consumidores, conforme sugere a nobre deputada, certamente elevará, na média, o preço das passagens aéreas para o conjunto de passageiros. No fundo, é mais uma decisão do tipo “me engana que eu gosto”. Explico o porquê.

Há pessoas que não viajam com bagagem despachada e outras que estão dispostas a viajar sem despachar, caso tenham que pagar por esse serviço. No fundo, o modelo de precificação das companhias aéreas procura captar esse fato e, por óbvio, maximizar o lucro a partir disso.

Ao dividir o valor pago em dois - transporte de passageiros e transporte de bagagem – as empresas aéreas dão a opção para que alguns passageiros paguem menos do que outros e “incentivam” as pessoas a transportarem o estritamente necessário em suas viagens.

Note-se que para aqueles que querem transportar mais bagagem, há sempre a possibilidade de se adquirir esse “direito”, inclusive com malas adicionais. Vale lembrar que o transporte de bagagem implica custo para a empresa. Mais peso exige a utilização de mais combustível.

No mínimo a utilização de mais espaço no porão do avião implica um custo de oportunidade para as empresas, posto que deixarão de transportar mais carga e rentabilizar seu voo de outra forma que não o transporte de passageiro. E este ponto é central, uma vez que acabarão por compensar esse custo adicional cobrando mais das passagens aéreas.

Nesse sentido, o que a proibição de cobrança por despacho de bagagem faz é criar um modelo de “venda casada” no setor aéreo, obrigando as empresas a cobrarem pela soma dos dois serviços (transporte de passageiro mais bagagem).

Por óbvio, como não existe almoço grátis, elas reposicionarão seu nível de preço para cima para todos os passageiros, mesmo porque os preços são livres neste mercado (como, de fato, deveriam ser).

No fundo, o que a proposta aprovada na Câmara dos Deputados faz é criar um subsídio cruzado entre passageiros, sendo que mesmo aqueles que estariam dispostos a abrir mão de despachar bagagens sejam obrigados a pagar pelo despacho dos demais passageiros.

Em outras palavras, a nova diretiva, ao contrário do que acontece no resto do mundo, criará um modelo que implicará perda de eficiência, associada à impossibilidade de discriminar preços entre passageiros, além de reduzir a possibilidade de rentabilizar o voo por meio de transporte de carga.

Fato é que essa discussão parece ter sido contaminada pelas elevações de preços no setor, que nada têm a ver com o modelo de precificação em duas partes (passageiro e bagagem). Conforme tenho insistido nesta coluna, os preços em mercados potencialmente competitivos flutuam de acordo com as movimentações de oferta e demanda.

E no caso do setor aéreo, esses dois vetores têm caminhado no sentido de pressionarem os preços para cima. Pelo lado da oferta, os constantes aumentos dos preços dos combustíveis, a instabilidade do dólar e a própria inflação têm pressionado os custos das empresas; sem falar da restrição de oferta de voos que ainda se faz sentir, mesmo com o fim da pandemia.

Já pelo lado da demanda, o que se observa é uma forte retomada da procura por viagens aéreas pelos brasileiros. Em fevereiro, por exemplo, a demanda de passageiros e a oferta de voos indicaram crescimento, respectivamente, de 367% e 127%. Não por outra razão os preços têm subido substancialmente nos últimos meses.

Neste cenário, só resta esperar que o Senado tenha mais discernimento do que a Câmara e seja capaz de analisar a questão da cobrança do despacho de bagagem de maneira cuidadosa, separando o joio (modelo de cobrança em duas partes no transporte aéreo) do trigo (flutuações do nível de preços associadas a variáveis de oferta e demanda). 

“Texto publicado originalmente no UOL em 29/4/2022.”

terça-feira, 12 de abril de 2022

PRECISAMOS DISCUTIR COM TRANSPARÊNCIA O DESTINO DOS IMPOSTOS QUE PAGAMOS


Na última semana foi divulgado que nossa carga tributária subiu para 33,9% do PIB, tornando-se a maior desde 2010. Podemos discutir o que houve para ela ter subido neste último ano (elevação da arrecadação, fim de isenções fiscais, etc.), mas o fato é que nossa carga tributária bruta já está acima dos 30% desde o início do século.

Quando a comparamos com a carga tributária média dos países que compõem a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que está em torno de 34%, percebemos que não estamos muito distantes dos países mais desenvolvidos do mundo em termos de arrecadação.

Mas visto de maneira crua, esses dados simplesmente escondem três questões que são fundamentais para um debate claro sobre desenvolvimento econômico com distribuição de renda. O primeiro deles diz respeito à forma como esses impostos são atualmente arrecadados no Brasil.

Nossa estrutura tributária é extremamente regressiva, concentrada em impostos sobre o consumo, o que faz com que os mais pobres paguem percentualmente mais impostos sobre os rendimentos recebidos.

Temos muitos impostos e alguns extremamente complexos – como o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – que elevam os custos de transação no processo arrecadatório, tanto para o Estado como para a iniciativa privada. E isso sem falar de isenções seletivas que são criadas (como a Zona Franca de Manaus), que distorcem a alocação eficiente de recursos, principalmente investimentos.

Do lado do gasto público, as coisas não são diferentes. Não utilizamos quaisquer critérios de avaliação social na alocação de recursos. Ao contrário, na maioria das vezes, as escolhas seguem diretrizes eminentemente politiqueiras, como mostra o próprio “orçamento secreto”, ou são limitadas pelos engessamentos legais construídos por todos os tipos de lobbies.

Mesmo quando falamos de funções básicas do Estado – Educação, Saúde, Segurança e a própria atuação do Judiciário – por qualquer métrica de comparação internacional que se escolha, nossos indicadores são terríveis. E tudo isso sem falar na corrupção que assola o país, com impacto direto sobre nosso desenvolvimento econômico.

Não por outra razão, apesar de termos uma carga tributária de “primeiro mundo”, o nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nos coloca na 84a posição entre 189 países, atrás de países como Chile (43a) e Colômbia (83a), com respectivas cargas tributárias em torno de 20%, e México (74a), com carga tributária de 16,4%.

E isso fica ainda mais claro quando vemos que países com cargas tributárias semelhantes estão muito à frente no ranking do IDH. São exemplos o Reino Unido (13º), Canadá (16º), Espanha (25º) e Portugal (38º).

Note-se que a questão aqui se sobrepõe a simples chavões, como “a defesa de um Estado Mínimo”. Não cabe a nós economistas dizermos qual o tamanho que o Estado deve ter. Essa é uma escolha da sociedade, que deve ser moldada a partir da nossa constituição e de nossas leis. Mas cabe sim a nós alertarmos que não “existe almoço grátis”.

Mais direitos implicam mais custos e, portanto, maior necessidade de arrecadação. E essa conta acaba sendo paga por nós, uma vez que o Estado é apenas o meio pela qual a riqueza se transfere entre membros da sociedade. Claro que podemos criar um modelo no qual os ricos contribuam cada vez mais, mas mesmo isso tem limite.

Na área tributária, é comum fazer-se referência a um conceito denominado Curva de Laffer, nome dado em homenagem ao economista norte-americano que a apresentou. Essa curva mostra que a arrecadação cresce na medida em que as alíquotas tributárias se elevam, mas apenas até um certo ponto, a partir do qual o governo começa a perder arrecadação.

E isso ocorreria porque elevações marginais de alíquotas reduziriam os incentivos para produzir riqueza por parte dos agentes afetados pelas obrigações tributárias adicionais (sem falar que esse processo poderia ainda estimular a elisão e sonegação fiscais). O grande problema de ordem prática é descobrir qual seria o ponto de inflexão arrecadatório.

Em que pese não haver um consenso sobre este assunto, os professores de economia de Berkeley, Christina Romer e David H Romer, em seu artigo de 2010 “The Macroeconomic Effects of Tax Changes: Estimates Based on a New Measure of Fiscal Shocks”, deram uma bela contribuição à discussão sobre efeitos de variações tributárias.

O casal demonstrou, com base em estudos econométricos e um longo trabalho de garimpagem de mudanças legislativas tributárias nos EUA, que um aumento de 1% em impostos para corrigir déficits ou estimular o crescimento de longo prazo pode provocar uma queda de até 3% no PIB. Obviamente nossa realidade tributária é outra, assim como nossa distribuição de renda.

Mas os resultados de lá nos convidam a refletir se a ideia sempre presente na cabeça dos nossos políticos, principalmente os de “esquerda”, de elevar tributos para resolver o descontrole dos nossos gastos públicos ou com o objetivo de retomar o crescimento econômico, não se tornará um verdadeiro tiro no pé. E isso ainda mais com a regressividade e baixa qualidade dos nossos gastos públicos.

Melhor faríamos se aprendêssemos algo com Christina Romer e seu marido, inclusive porque ela foi presidente do Conselho de Assessores Econômicos da administração Obama, um partido considerado de “esquerda” nos EUA, e supostamente mais preocupado com distribuição de renda. Mesmo porque podemos avançar muito apenas melhorando nosso sistema tributário e a qualidade do gasto público.

“Texto publicado originalmente no UOL em 12/4/2022.”


sábado, 2 de abril de 2022

APP DE DELIVERY DA PREFEITURA DO RIO PODE ACABAR PREJUDICANDO O CONSUMIDOR

 

No último dia 28 de março, deparei-me com uma notícia na qual o Secretário Municipal de Fazenda e Planejamento, Pedro Paulo, divulgou que foi colocado no ar um App de delivery de comida pela Prefeitura do Rio, o “Valeu”.

A justificativa para isso seria que, com a nova plataforma, os ganhos para entregadores aumentariam e os restaurantes cadastrados teriam seus custos de entrega reduzidos. E isso ocorreria por meio de cortes das taxas que são cobradas dos restaurantes pelas plataformas de delivery.

A primeira coisa que me ocorreu quando li essa matéria foi que a Prefeitura do Rio, da noite para o dia, tinha resolvido todos os problemas que lhe cabem. Aparentemente, a educação na cidade está em um nível elevadíssimo, a saúde é de primeira qualidade, não existe mais déficit habitacional e o sistema de transporte público e viário está bem muito resolvido e integrado, não?

Mas enfim, fui procurar saber mais sobre o assunto e descobri que hoje já existe uma plataforma da prefeitura do Rio para usuários de táxis, que inclusive dá desconto, a “Taxi.Rio”. Provavelmente tenha sido essa a inspiração. Mesmo reticente com relação a esse serviço, entendo que, ao menos neste caso, existe uma relação mais próxima das funções da Prefeitura.

Na realidade, existe uma grande diferença entre criar uma plataforma para dinamizar e até gerar concorrência na prestação de um serviço que já é regulado pela própria Prefeitura e dar um passo maior, desenvolvendo uma outra plataforma que interfere diretamente em relações de serviços tipicamente privados.

Para entender meu ponto, vou partir da justificava supostamente apresentada pelo secretário e economista Pedro Paulo no texto que li. Na sua visão, haveria uma falha de mercado a ser corrigida pela Prefeitura do Rio. Sob o aspecto econômico, existem 4 falhas de mercado que justificariam a intervenção do Estado, mas para efeito do tema aqui exposto, apenas duas nos interessam.

A primeira é a necessidade de atuação do Estado para prover os chamados bens (ou serviços) públicos no sentido estritamente econômico. E este não é um conceito trivial, uma vez que traz consigo duas hipóteses econômicas subjacentes (não rivalidade no consumo e não exclusão), pré-requisitos para se definir um bem público e que são raramente encontradas.

Mas de maneira muito simplificada, bens (ou serviços) públicos são aqueles que são de interesse de toda a sociedade, mas o setor privado não tem incentivo para provê-los, uma vez que não consegue criar formas de obter lucro com eles. São exemplos típicos justiça, segurança, iluminação, dentre outros.

Nesses casos, cabe ao Estado constituí-los diretamente ou coordenar o processo de sua constituição pelo setor privado, mediante a criação de mecanismos que permitam a obtenção de um retorno razoável. No caso de aplicativos de delivery, eles já existem, o que por si só indica que não estamos tratando de um caso típico de bem público.

A segunda falha de mercado seria o uso de um eventual poder de mercado por parte das empresas prestadoras do serviço em questão, aplicativos de delivery. No caso, parece que o secretário considera que essas empresas têm achatado a margem dos restaurantes, de um lado, e pagado um preço abaixo do que seria competitivo para os entregadores de comida.

Não descarto, em princípio, que essas empresas tenham de fato poder de mercado, pois estamos tratando de plataformas que geram efeitos que dificultam a entrada de novos players. Aliás, a entrada e saída do Uber desse mercado é um exemplo.

Também não desconsidero que essas plataformas podem estar usando seu poder de mercado para comprimir as margens de restaurantes e pagar menos do que seria “razoável” para entregadores. Mas o ponto não é esse. O ponto é que não compete à Prefeitura do Rio resolver esse problema, mas sim ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Aliás, hoje já há no Cade um processo administrativo aberto contra o iFood por utilização de cláusulas de exclusividade com restaurantes mais demandados, e com o potencial de restringir a concorrência e entrada de novas plataformas de delivery nesse mercado. Se a questão for realmente grave como sugere o secretário, caberia ao órgão de defesa de concorrência acelerar o processo de análise e punição.

De toda forma, a atuação da Prefeitura, além de não ser capaz de resolver esse problema, poderia introduzir uma falha de Estado neste processo, em vez de corrigir uma falha de governo.

A entrada nesse mercado não é nada trivial e envolve custos fixos elevados, inclusive destinados a investimentos em inovações. Fora isso, existem custos de montagem de rede, criação de cardápios mais direcionados, de intermediação de “conflitos” entre restaurante e cliente, dentre outros.

E será que a Prefeitura está preparada para lidar com tudo isso? Será que saberá precificar os custos desses serviços, inclusive o de oportunidade de deixar de se dedicar a outras áreas próprias da administração pública?

É muito fácil avançar sobre uma área do setor privado definindo preços que nada têm a ver com os reais custos enfrentados no setor, uma vez que a Prefeitura sempre poderá subsidiar seus custos com o orçamento público. Só que isso infelizmente altera os incentivos de mercado.

A questão é que, no limite, a atuação da Prefeitura poderá reduzir a atratividade para a entrada de novas empresas de plataformas de delivery, que, essas sim, poderiam gerar uma competição saudável e melhorar a situação no mercado para restaurantes, entregadores e até consumidores.

Aliás, nossa história está cheia de casos nos quais o Estado resolveu criar empresas públicas que só distorceram os sinais de mercado, afastaram investimentos privados e trouxeram efeitos ruins para toda a sociedade. Resta saber se a Prefeitura do Rio irá trilhar esse mesmo caminho.

“Texto publicado originalmente no UOL em 2/4/2022.”