terça-feira, 28 de maio de 2024

POR QUE O CODESHARE ENTRE AZUL E GOL DEVERIA SER ANALISADO PELO CADE

Acordo merece um acompanhamento mais de perto da ANAC e do Cade sobre seus efeitos

Na última semana,  Azul e Gol anunciaram um acordo  para compartilhamento de voos em rotas nas quais não há sobreposição de voos entre as  duas empresas. Ademais, elas informam que permitirão que membros dos programas Azul Fidelidade e Smiles (da Gol) acumulem pontos ou milhas no programa de sua escolha quando adquirirem os trechos inclusos no codeshare.

Não tenho qualquer dúvida de que, sob o ponto de vista empresarial, há todo sentido nesta operação, principalmente para a Azul, que tem uma larga capilaridade por todo o país, como o próprio comunicado informa. Não obstante, não vejo como líquido e certo que o consumidor só terá a ganhar com esse acordo. Por isso, entendo que, seja por precaução das próprias empresas, seja porque envolve uma questão concorrencial não trivial, esta operação, em particular, deveria ser apresentada previamente ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Apesar de a Resolução 17/2016 do Cade e decisões posteriores do órgão permitirem uma eventual intepretação de que esse tipo de acordo não precisaria ser apresentado durante um período de dois anos (devendo só ser levado posteriormente para análise se ultrapassar esse limite de tempo), entendo que há questões que merecem ser mais bem entendidas sobre o efeito dessa “união de esforços entre as empresas”.

E, para isso, lembro de três aspectos. O primeiro é que, pelo quanto anunciado até o momento, o compartilhamento não está direcionado para a redução de custos, mas sim para a elevação de receitas. Não há aparentemente nada que indique, por exemplo, racionalização de rotas ou redução de custos operacionais em aeroportos, que estejam diretamente ligados ao quanto proposto. Ou seja, o objetivo parece ser reduzir algum grau de ociosidade nos voos (melhorando a eficiência alocativa) e capturar parte da disposição de alguns consumidores pagarem um preço adicional (captura do chamado excedente do consumidor).

O segundo deles é que a análise de concorrência deve ir além de uma simples avaliação de cláusulas contratuais e de possíveis mudanças estruturais no mercado. Na realidade, até mais importante do que esses aspectos é a análise das alterações dos incentivos a concorrer gerados no mercado.

E, nesse sentido, vale lembrar de um  estudo de 2023 do Cade que, apesar de aplicado a processos de aquisições propriamente ditos, levanta, ao meu ver, uma preocupação bastante pertinente no setor, que também não deveria ser negligenciada em casos de codeshare envolvendo empresas que operam no mesmo país, qual seja: o impacto da concorrência potencial como forma de inibira cobrança de preços supra competitivos.

De uma maneira simplista, a lógica da tese da concorrência potencial indicaria que, sob certas circunstâncias, mesmo em rotas nas quais opera uma única empresa, poderíamos encontrar preços próximos ao competitivos. Isso ocorreria porque a companhia aérea já estabelecida nessa rota perceberia que empresas que estão em mercados (rotas) próximos (principalmente operando em mesmos aeroportos) poderiam facilmente entrar nas suas rotas, caso elevem seus preços.

No codeshare apresentado na última semana, dado que se limita a rotas nas quais as duas empresas não concorrem atualmente, a questão seria avaliar se essa associação não tiraria esse tipo de pressão competitiva ou mesmo se não atrasaria uma eventual entrada de uma das duas empresas na rota de sua “nova associada”. Ademais, vale entender melhor também o efeito sobre o próprio grupo Abra, da qual a Gol passou a fazer parte mais recentemente.

O terceiro aspecto a ser considerado é que, no setor aéreo, o modelo de precificação envolve o que se conhece na literatura econômica como discriminação de preços de terceiro grau. Mais precisamente, as empresas procuram identificar grupos de consumidores com diferente disposição a pagar e reservam um número de assentos dentro de cada voo considerando essa perspectiva.

Nesse sentido, não há como se descartar, a priori, que a venda de passagem combinada e consequente elevação da demanda nessas rotas não faça, pela própria lógica econômica, com que o número de assentos vendidos com preços menores seja reduzido, dando lugar à venda de passagem com preços mais elevados. Ademais, é possível que sobrem menos assentos disponíveis para emissão de passagem via programa de fidelidade, inclusive com a necessidade de utilização de mais pontos.

De toda forma, a redistribuição de assentos entre grupos não é um problema per se, cabendo avaliar também o efeito sobre a quantidade total de passagens vendidas nesses trechos (eficiência alocativa).

Fato é que, a exemplo de qualquer caso envolvendo a área de defesa da concorrência, não há uma regra ex-ante que permita afirmar que este é ou não um caso que efetivamente restringirá a concorrência. Entretanto, dado o quanto apresentado até o momento, faz todo sentido econômico o Cade avocar e conduzir uma análise mais detalhada deste codeshare; mesmo porque a própria lei antitruste brasileira (Lei 12.529/11) contém dispositivos para isso.

Reforço que não estou apregoando a priori que esse acordo deva ser desconstituído, mas merece, no mínimo, um acompanhamento mais de perto da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) e do Cade sobre seus efeitos nos mercados afetados pela operação, considerando, ainda mais, a possibilidade futura de uma união definitiva entre as duas empresas.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 28/5/2024.”

quinta-feira, 23 de maio de 2024

SERÁ QUE NOS DIAS DE HOJE PRECISAMOS DE EMPRESAS ESTATAIS NO PAÍS?

Em geral, escuto três tipos de argumentos em favor de empresas públicas

Nos últimos meses, uma série de falas e de atitudes do  Presidente da República e de alguns de seus ministros têm ressuscitado um debate envolvendo qual deveria ser o papel de empresas sob o controle (ou participação) do Estado no país. Sob a minha ótica, há uma pergunta que antecede essa discussão, qual seja: precisamos de empresas públicas nos dias de hoje?

Em geral, escuto três tipos de argumentos em favor de empresas estatais. O primeiro deles é o de que elas são empresas estratégicas para o desenvolvimento econômico. Aliás, esse é o principal argumento da maioria dos políticos e do próprio presidente da república. Implicitamente, este primeiro argumento nos leva à necessidade lógica de uma avaliação econômica da presença do que se denomina falha de mercado.

A ideia seria que, se deixássemos por conta do mercado, determinados serviços não seriam criados e certos setores não se desenvolveriam. Há, entretanto, alguns aspectos a serem considerados. O primeiro deles é que esse pressuposto pressupõe a identificação das chamadas falhas de mercado, que envolvem conceitos técnicos, como a presença de bens públicos e externalidades. O problema é que, no caso brasileiro, a presença de estatais, com raríssimas exceções, como o caso da Embrapa, não tem como contrapartida a identificação de qualquer falha de mercado que a justifique.

Aliás, há uma grande confusão entre o conceito econômico de bem público e jurídico de empresa pública. Enquanto o primeiro nos leva à conclusão de que, na ausência do Estado, determinados serviços não seriam criados (dos quais são exemplos segurança pública, defesa nacional, iluminação pública, dentre outros), o segundo envolve simplesmente uma decisão de opção política, sem qualquer justificativa econômica.

Por exemplo, na ausência do Estado, nada indica que não teríamos hoje uma empresa geradora de energia, outra voltada à exploração e refino de petróleo, aeroportos privados, empresas de telecomunicações ou mesmo de comunicações.

Note-se ainda que, mesmo tendo identificado algum tipo de falha de mercado, a solução pode passar apenas pela coordenação do Estado, sem que haja a necessidade de se criar uma empresa pública. Bons exemplos podem ser observados em casos de concessões e parcerias público-privadas, associadas a modelos regulatórios eficientes.

No limite, pode-se pensar até em coordenação estatal via políticas industriais baseadas em “incentivos econômicos”, com prazos bem delineados, cobrança de metas e revisões constantes, mas nunca centradas em protecionismo, subsídios puros ou compras governamentais sem critérios, como tem proposto o atual governo.

O segundo argumento em defesa de estatais é o de que, se entregue ao setor privado, essas empresas não atenderão ao interesse público, uma vez que só pensam no lucro. Mais precisamente, a alegação é que uma eventual privatização provocará elevação de preços e redução da qualidade de serviços. Esse é o caso da discussão envolvendo a possibilidade de venda do controle da Sabesp em São Paulo.

Entretanto, não há qualquer comprovação de que as empresas públicas prestam um serviço melhor e, ao mesmo tempo, com preços menores do que as empresas privadas. Aliás, a percepção da sociedade é, em geral, a oposta.

De toda forma, não há nada de errado em empresários buscarem lucro, mesmo porque sem que isso ocorra, não haverá incentivo para se manter no negócio. A questão que se coloca é o que seria um lucro razoável, que atenda, ao mesmo tempo, o interesse do consumidor representado pelo trinômio modicidade tarifária, universalização e qualidade do serviço.

E, pressupondo que estamos tratando de mercados não competitivos (porque, do contrário, não haveria razão para atuação do Estado), há todo um arcabouço regulatório que pode ser utilizado para a consecução dos objetivos que atendam aos interesses da sociedade. Só que, para isso, o modelo regulatório deve ser bem desenhado e o órgão regulador deve ter independência técnica e financeira para atuar.

Note-se que uma eventual crítica de que as agências podem ser suscetíveis a pressões políticas (ou mesmo do setor empresarial) valeria ainda mais para empresas estatais cujas nomeações não passam pelo mesmo processo de escolha dos diretores das agências e cujos dirigentes não têm garantia de mandato pré-definido.

Por fim, o terceiro argumento que leio constantemente em favor de empresas estatais é o de que a maioria delas são superavitárias e geram lucro para o Estado, contribuindo com o fechamento das contas públicas. Particularmente, entendo que essa é uma discussão sem qualquer sentido, na medida em que esse cálculo desconsidera o custo de oportunidade que o Estado incorre em alocar pessoas, recursos e tempo na gestão de algo que poderia ser feito igualmente ou melhor pela iniciativa privada, sendo que suas prioridades deveriam estar voltadas para serviços como educação, saúde e segurança pública, por exemplo.

De toda forma, não é verdade que a maioria das empresas públicas brasileiras são superavitárias. Em 2023, por exemplo, no agregado, as nossas empresas estatais fecharam com um rombo de R$ 2,2 bilhões. E mesmo aquelas que são superavitárias podem obter esse resultado usando seu eventual poder de mercado em segmentos pouco competitivos e não, necessariamente, por serem eficientes. Ou seja, neste caso, a conta acaba sendo paga pelo “consumidor-cidadão”.

Em realidade, sempre que vejo alguém defendendo a necessidade de termos empresas estatais no país, pergunto-me quais são os reais interesses por trás dessa insistência, ainda mais lembrando dos vários casos de corrupção como o Mensalão e Petrolão. E isso sem entrar a fundo nas decisões de investimentos ineficientes, contratação e gestão de mão-de-obra, escolha de fornecedores, etc.

Parece-me que o melhor caminho a ser seguido seria identificarmos os casos nos quais há, de fato, sentido econômico (como o descrito neste texto) para mantermos empresas públicas e privatizarmos todas as demais estatais, considerando, inclusive, a possiblidade de criarmos modelos de venda de ativos públicos que gerem mais concorrência nos mercados, em benefício do próprio consumidor.

Ademais, poderíamos usar esse dinheiro para abatermos parte da dívida pública, reduzindo os serviços (juros) pagos a cada período, liberando recursos para ampliarmos investimentos em áreas carentes, como educação, saúde e segurança pública.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/5/2024.”

terça-feira, 14 de maio de 2024

DIVERGÊNCIA SOBRE REDUÇÃO DE JUROS DIZ POUCO SOBRE POLÍTICA MONETÁRIA

Futuro da política monetária nos próximos dois anos já está definido desde o resultado das eleições passadas

Na última semana, o Comitê de Política Monetária (Copom) reduziu a taxa de juros Selic para 10,50% ao ano. Em seu comunicado, o Comitê, como de costume, elencou os principais aspectos que embasaram sua decisão.

No cenário externo, foram destacados como pontos preocupantes a incerteza sobre o início da flexibilização de política monetária nos Estados Unidos e sobre a velocidade com que se observará a queda da inflação de forma sustentada em diversos países.

Já no âmbito doméstico, o Copom alertou que há um conjunto de indicadores de atividade econômica (principalmente do mercado de trabalho) que tem apontado um maior aquecimento econômico do que era de se esperar. Em particular, foi destacada uma resiliência da inflação de serviços maior do que a esperada, dado que o hiato do produto (diferença entre o PIB efetivo e o potencial) tem sido menor do que o projetado.

Também foram apontadas preocupações com a falta de compromisso do governo com um ajuste fiscal crível e seu potencial impacto sobre a política monetária. De fato, a manutenção de uma trajetória das contas públicas sustentável é fundamental para ancorar as expectativas de inflação e permitir a redução dos prêmios de risco dos ativos financeiros e, consequentemente, a queda da taxa de juros primária.

E isso é ainda mais verdade em um modelo de metas de inflação cuja taxa de juros neutra é um balizador importante no processo do Banco Central (Bacen). Essa taxa nada mais é do que aquela que, pressupondo uma situação de pleno emprego, não afeta o ritmo de inflação e de crescimento correntes. Ela é, no fundo, um parâmetro para se tomar decisões de política monetária.

Assim, se a inflação estiver acima da meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), o Bacen deverá subir a  taxa de juros primária (Selic) vigente acima da neutra para trazer a inflação para o centro da meta definida. Ato contínuo, se a inflação estiver abaixo da meta (fato raro no Brasil), a taxa Selic deverá cair, estimulando a economia e fazendo com que a inflação suba.

A grande dificuldade que se tem nesse processo é identificar qual seria a taxa de juros neutra a cada momento e qual a calibragem correta da taxa Selic (acima da neutra) para levar a inflação para a meta no horizonte definido pela autoridade monetária. E as incertezas apontadas na última ata do Copom (principalmente com relação às contas públicas) só reforçam que essa não é uma tarefa trivial, abrindo margem para visões distintas sobre o ritmo da queda.

Nesse sentido, parece-me que o valor que o mercado financeiro e a imprensa estão atribuindo à divergência entre os membros do Copom é algo um tanto quanto exagerado. A interpretação de que o “racha” entre os membros indicados pelo atual governo e os dos governos anteriores apontaria para um afrouxamento da política monetária no futuro ignora alguns fatos objetivos.

Em primeiro lugar, não houve divergência sobre a direção que os juros devam tomar. Todos concordaram que há, neste momento, espaço para uma redução da taxa primária. E como disse, dado o grau de incerteza vigente na economia brasileira e mundial, há claramente espaço para uma discussão técnica sobre qual o ritmo da queda da taxa de juros a ser empreendida.

Em segundo, não me parece razoável assumir, a priori, que todos os indicados pelo  governo Lula estariam lá apenas por razões políticas, com o objetivo de atender aos interesses ditados pelo presidente e por seu partido.

Por exemplo, o economista e professor da FGV Paulo Picchetti é reconhecidamente um profissional do mais alto gabarito, um dos maiores especialistas em inflação do país e profundo conhecedor de modelos econométricos. E quem já teve a oportunidade de trabalhar com ele sabe de sua seriedade e ética profissional.

Em terceiro, o rumo futuro da política monetária nos próximos dois anos já está definido desde o resultado das eleições passadas. Gostemos ou não, o presidente da república tem o direito (e até o dever) de nomear os próximos diretores do Banco Central e já deixou bem claro sua total falta de compromisso com qualquer ajuste fiscal sério e com uma política monetária que busque controlar a inflação. Aliás, justiça seja feita, ele externou claramente sua posição durante o próprio processo eleitoral.

Nesse contexto, parece-me totalmente sem sentido só agora ter caído a ficha para o mercado e para a imprensa em geral sobre o rumo da política monetária a partir da troca dos próximos diretores. Se fosse isso mesmo, estaríamos diante de gestores profissionais de fundo assumindo uma postura “pollyanna” ou adotando uma estratégia de avestruz, escondendo a cabeça debaixo da terra para fugir do óbvio.

Como não creio nisso, a única explicação plausível que vejo para esse suposto “treme treme” no mercado financeiro na última semana é que se criou um medo generalizado de que agora ficará mais difícil convencer poupadores de que vivemos no país das oportunidades e que existe um amplo leque de ótimos investimentos com retornos razoáveis disponíveis.

Na realidade, o “rei já está nu há muito tempo” e a associação de políticas fiscal e monetária expansionistas, no atual contexto do país, só fará repetir no futuro o que aconteceu no governo Dilma, quando a inflação passou de dois dígitos. O problema é que é muito fácil olhar para os dados atuais e acreditar que a economia esteja bem, quando o que importa, de fato, é a dinâmica que estará sendo criada para os próximos anos. Quem viver verá.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 14/5/2024.”

quarta-feira, 8 de maio de 2024

NÃO É HORA DE POLITIZAR A TRAGÉDIA NO RIO GRANDE DO SUL

Definitivamente não precisamos disso neste momento

Acompanhando com uma certa incredulidade os debates a respeito da tragédia que se abateu sobre o estado do Rio Grande do Sul, tenho visto dois tipos de discursos, tanto em rede sociais como na própria imprensa em geral. O primeiro envolve questionamentos sobre de quem seria a culpa dessa tragédia. O segundo indica uma tentativa de associar diretamente o problema ocorrido com o aquecimento global.

No primeiro caso, vi, por exemplo, gente apontando o dedo para o governador do estado e para o prefeito de Porto Alegre, como se eles tivessem sido os grandes responsáveis pelas inundações observadas. Claro que sempre podemos encontrar erros pontuais de gestão e que são poucos os políticos que realmente se preocupam em destinar os recursos necessários para a pasta de Assistência Social e, mais especificamente, para a Defesa Civil, muito provavelmente pela falta de visibilidade desses gastos para os eleitores.

Entretanto, não é disso que trata o caso. O que aconteceu no Rio Grande do Sul foi um ponto totalmente fora da curva e a tragédia ocorreria de toda forma. Talvez o impacto sobre as pessoas fosse um pouco menor, mas não escaparíamos do desastre. E isso mostra que temos muito a aprender com as decisões de localização de população e urbanização que tomamos ao longo do tempo.

Vi também jornalistas questionando agressivamente a razão de os modelos de previsão climática “terem falhado” em captar o montante de chuva que viria, sem ao menos entenderem que esses modelos estatísticos (pela própria definição) não são uma conta matemática simples que gera um único resultado certo, além de estarem implicitamente sujeitos a uma série de variáveis que podem mudar de uma hora para outra.

Mas o pior de tudo foi observar que a velha  polarização entre petistas e bolsonaristas também chegou ao Rio Grande do Sul. De um lado, alguns bolsonaristas fazendo todo tipo de acusação ao comportamento do atual presidente e ao daprimeira-dama diante do caso. De outro, alguns petistas lembrando que o Rio Grande do Sul foi um dos estados nos quais Bolsonaro venceu, tentando associar esse fato com o “dilúvio” ocorrido. Definitivamente não precisamos disso neste momento.

Com relação às questões climáticas, alguns já se apressaram em relacionar o evento no Rio Grande do Sul com o aquecimento global, destacando que já estamos pagando a conta de nossas decisões passadas de interferir no meio ambiente. Até o Le Monde, jornal francês, fez uma  matéria nesse sentido.

Para mim, uma associação simplista desse tipo cheira um oportunismo descabido de pseudoambientalistas, que estão mais preocupados em reafirmar suas respectivas crenças do que com o fato ocorrido em si. E quando afirmo isso, estou bem longe de questionar que a nossa interação com o meio ambiente gere efeitos. Ao contrário, parece-me lógico reconhecer que tal correlação existe.

Não é essa a questão que importa, mas sim entender a proporção do impacto e o ritmo de mudança que essa interferência gera. E compreender esses aspectos é fundamental para desenharmos políticas públicas mundiais que induzam nossa mudança de comportamento, mas que, ao mesmo tempo, minimizem os custos associados a essa alteração para todos nós.

O problema é que, até o momento, não temos nenhum estudo definitivo que mostre o quanto das mudanças climáticas é consequência da interferência humana e o quanto deriva de um processo natural de evolução do planeta. No fundo, a questão sobre o aquecimento global é séria demais para trazê-la para o meio de uma tragédia, junto com crendices e paixões ideológicas.

Para longe dessas discussões que não agregam nada, o fato objetivo e prático com o qual teremos que lidar é que essa tragédia no Rio Grande do Sul deixará uma conta elevadíssima para o estado e para o próprio país, algo ainda muito difícil de ser estimado neste momento.

Para além do trauma pessoal das famílias gaúchas (que perderam parentes, bens materiais e que ainda podem perder o emprego com a destruição de empresas), há custos associados à reconstrução de infraestrutura (estradas, ferrovias, aeroportos, etc.) e outros gastos necessários para a retomada da atividade econômica em todos os setores do estado.

Não por outra razão, o governador  Eduardo Leite (PSDB) afirmou que o Rio Grande do Sul vai precisar de um “Plano Marshall”. De fato, reconstruir não será uma tarefa fácil e envolverá um grande esforço não só dos gaúchos, mas de todos os brasileiros.

A boa notícia é que temos assistido a uma mobilização da sociedade civil como nunca antes vista. Mais do que isso, os políticos em Brasília parecem ter entendido a necessidade de dar uma resposta rápida ao caos que se criou no estado. Não por outra razão, foi aprovado Projeto de Decreto Legislativo (PDL) reconhecendo estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul até 31 de dezembro de 2024, permitindo maior agilidade na liberação de recursos federais.

O mais importante daqui em diante é aprender com o evento climático, entender o que pode ser melhorado em termos de investimento em prevenção a catástrofes e criar uma governança forte de distribuição de recursos, considerando as reais prioridades das pessoas e do estado, inclusive analisando o efeito multiplicador que cada real alocado poderá gerar para toda a sociedade. Sem que isso seja feito, toda essa tragédia terá sido em vão.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 8/5/2024.”