terça-feira, 31 de outubro de 2023

LULA CONTINUA A SER SEU PIOR INIMIGO POLÍTICO NO GOVERNO ATUAL

As falas do presidente indicam que nossa opção atual está sendo pela contratação antecipada de uma crise econômica futura

Na última sexta-feira (27), o presidente Lula, em café da manhã com jornalistas, afirmou que o país não precisa de uma  meta fiscal igual a zero “que obrigue o Brasil a começar o ano fazendo corte de bilhões (de reais) nas obras que são prioritárias para esse país”. E não bastasse isso, ainda disse “que muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida”.

Honestamente, acho estranho essas falas causarem tanto espanto a tantos. Na realidade, Lula está apenas reafirmando o que pensa e quem realmente é, além de trazer à baila o Lula das eleições passadas. Mas, de toda forma, não há como ignorar que seu discurso é falacioso, demagogo e irresponsável, e joga contra seu próprio governo.

Falacioso porque o ajuste fiscal não depende de corte em gastos prioritários (como em investimentos produtivos e sociais). Ao contrário, em um país cuja carga tributária beira os 35%, há muito espaço para melhorar a eficiência do gasto público. Para além das medidas de longo prazo (reforma administrativa e complemento da reforma da previdência), há que se priorizar e racionalizar gastos, inclusive na área social.

Há vários técnicos nos Ministérios da Fazenda e Planejamento que têm consciência disso e que poderiam ser ouvidos, em vez de seus colegas políticos na Casa Civil e em outros ministérios, que se preocupam apenas em atender interesses de determinados grupos privados ou de funcionários públicos.

Sua afirmação é demagoga porque, ao afirmar que “o mercado é ganancioso”, não especifica quem é o “tal mercado” e dá a entender que ele seria composto apenas pelos mais ricos e banqueiros. Entretanto, também fazem parte do “mercado” fundos de pensão (inclusive de trabalhadores) e médios e pequenos poupadores, que, inclusive, aplicam em fundos de renda fixa, cuja carteira é composta em sua maior parte por títulos públicos.

Aliás, uma rápida busca por notícias na internet mostra que o próprio Lula, na sua declaração ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), aloca uma boa parte do seu patrimônio em ativos financeiros (VGBL, aplicações de renda fixa e fundos de curto prazo), cujos rendimentos estão, inclusive, atrelados em alguma medida à taxa de juros paga pelos títulos públicos.

Ademais, esperar que alguém, seja lá quem for, esteja disposto a: (i) correr mais risco, com o mesmo retorno; (ii) alocar recursos em investimentos que podem render menos do que a inflação (se os juros reais forem negativos); ou (iii) manter dinheiro em ativos que rendam menos do que investimentos alternativos, é pedir que se faça um exercício de total irracionalidade econômica, que nem mesmo o próprio Lula parece estar disposto a fazer.

Finalmente, sua fala é irresponsável na medida em que afeta negativamente as expectativas econômicas e gera impacto sobre o câmbio, juros futuros e riqueza das pessoas (bolsa de valores, por exemplo). E essas mudanças afetam, direta ou indiretamente, o equilíbrio das contas públicas e a economia como um todo.

A desvalorização cambial, por exemplo, tem impacto sobre a inflação, dificultando o trabalho do  Banco Central de reduzir as taxas de juros, conforme demanda pública do próprio presidente Lula. Ademais, a inflação reduz o poder de compra da sociedade, principalmente dos mais pobres.

A sinalização da continuidade do déficit público e, consequentemente, da manutenção de uma trajetória crescente da dívida pública eleva a percepção de risco futuro de insolvência do Estado brasileiro. Com isso, os investidores passam a exigir maiores taxas de juros para financiar o governo, com impacto sobre todas as demais taxas do mercado, como aquelas que afetam o custo dos investimentos e do consumo.

Nesse sentido, a tendência é que a  economia cresça menos do que poderia, gerando menos emprego, menos arrecadação (piorando ainda mais a situação fiscal) e menos renda a ser distribuída; sem falar que a própria elevação dos juros tem um impacto negativo direto sobre o déficit nominal (que inclui os juros necessários para financiar o Estado).

Por fim, a piora das expectativas econômicas tende a afetar negativamente o valor de vários ativos, inclusive, mas não só, aqueles negociados na bolsa de valores. Neste processo, os detentores desses ativos passam a se sentir “mais pobres”, menos confiantes e, principalmente, menos dispostos a consumir. Ato contínuo, os empresários passam a ficar mais avessos a realizar novos investimentos produtivos. Com isso, cria-se um círculo vicioso que tende a se retroalimentar e paralisar a economia.

E isso, em um momento no qual o Congresso discute reformas no nosso sistema tributário  e a aprovação do orçamento para 2024. Aliás, este ruído já foi sentido no ambiente político. Na própria sexta-feira, o relator do orçamento, Danilo Fortes (União-CE), criticou, com toda razão, a declaração de Lula; mesmo porque, qual seria a lógica de se preparar um orçamento que já se sabe, de antemão, que não será cumprido?

Pior foi a entrevista nesta segunda-feira (30) do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Não esclareceu qual será a postura do governo daqui para frente, se limitando a acusar governos passados de não terem equacionado a questão fiscal (só se esquecendo de que o principal causador do problema foi o próprio PT, principalmente durante o governo Dilma). Ademais, mostrou-se irritado com os jornalistas que fizeram perguntas simples, que exigiam apenas uma resposta do tipo “sim” ou “não”.

Infelizmente, até segunda ordem, as falas de Lula indicam que nossa opção atual está sendo pela contratação antecipada de uma crise econômica futura, que pode culminar em um processo de estagflação (recessão com inflação).

“Texto publicado originalmente no portal IG em 31/10/2023.”


sábado, 28 de outubro de 2023

PRIMEIRO TURNO NA ARGENTINA MOSTRA PERSPECTIVA ECONÔMICA PREOCUPANTE

O candidato Sergio Massa tem se mostrado um total desastre na condução da política econômica

Tenho visto muita gente escrevendo que o  processo eleitoral na Argentina repetiu o padrão de polarização recente observado na América Latina, cujo melhor exemplo seria o caso brasileiro. Aliás, vi também jornalista e articulista comparando o  candidato Milei ao próprio  Bolsonaro e justificando que o melhor para o  Brasil seria a vitória do candidato governista Sergio Massa

A meu ver, tais comparações pouco agregam e não tocam no âmago da questão, qual seja, a razão de estarmos criando um padrão de levarmos para o  segundo turno posições extremas, deixando de discutir os reais problemas econômicos vivenciados na América Latina.

Se tomarmos o caso argentino, perceberemos que o discurso de  Javier Milei é pouco crível de ser levado à frente. E isso não só porque fala em dolarizar a  economia ou, na “melhor tradição” libertária, acabar com o Banco Central . Na realidade, a grande dificuldade que enfrentará será reduzir os gastos públicos para algo em torno de 15% do PIB argentino, conforme prometido, em um país com aproximadamente 40% da população que depende do Estado.

Claro que ele levanta contrapartidas que são bem-vindas, como simplificação tributária, modernização das leis trabalhistas, privatizações e reformas no setor de energia e agropecuário. Mas isso são medidas estruturais que levam tempo e que muito provavelmente não conseguiriam compensar os efeitos da redução drástica dos gastos públicos por ele proposta.

Por outro lado, Sergio Massa, o candidato da situação, é o atual Ministro da Fazenda e tem se mostrado um total desastre na condução da  política econômica no “melhor estilo” Kirchneristas/Peronista. E, para piorar, no desespero de tentar não perder as eleições, Massa resolveu adotar um conjunto de medidas populistas (denominado “PlanPlatita” pelos argentinos) que têm acabado de vez com as finanças públicas do país.

Em realidade, tais medidas não passam de uma compra de votos de maneira descarada envolvendo desonerações e distribuição de dinheiro para uma larga gama da sociedade argentina, principalmente para aqueles 40% que já se encontram abaixo da linha da pobreza. 

Fato é que essa decisão populista, associada a uma campanha política que propaga o medo com relação ao que Mileipode fazer, permitiu a  Massa ir para o segundo turno em primeiro lugar. E pelos números das pesquisas recentes, o candidato da situação deverá se eleger e ter que lidar com sua própria herança: uma economia que deve chegar ao final do ano com uma inflação em torno de 170% e com uma recessão gravíssima, derivados, em última instância, do desajuste das contas públicas.

E o problema disso é que nada em sua proposta de governo indica qualquer tentativa de correção consistente de rumo. Ao contrário, é um conjunto de intenções de mais do mesmo, que atende sua base eleitoral calcada em funcionários públicos e dependentes do Estado. E é neste ponto que mora todo o problema. 

Argentina caiu de vez em uma armadilha típica de países que não conseguem entender duas coisas. A primeira é que todo gasto público deve ter como contrapartida alguma fonte de receitas, pois, do contrário, o resultado será uma trajetória de elevação de déficit e dívida pública, culminando no que os economistas denominam estagflação (inflação com estagnação econômica).

A segunda coisa é entender que, mesmo que a correção seja realizada com elevação de impostos, a tributação em excesso acaba fazendo com que o país gere menos renda do que poderia, empobrecendo a todos. E isso é tão mais verdade quanto mais ineficientes forem os gastos públicos. E neste aspecto específico, tanto  Argentina como Brasil se igualam.

Em realidade, esse círculo vicioso de descontrole de gastos públicos, que gera como contrapartida desemprego e empobrecimento de uma boa parte da população, é um caminho fértil para criar uma espécie de “dependência química estatal de eleitores”, que passam a acreditar e votar em todo tipo de candidato populista. 

E isso acaba acontecendo porque muitos deles, inclusive, têm medo do que viria com a mudança do paradigma de distribuição de benesses estatais. E é neste raciocínio que Massa também tem se apoiado. Claro que alguém poderia dizer que, dada a gravidade da situação, ele seria obrigado a enfrentar a dura realidade do país e adotar ao menos algumas medidas corretivas. 

O problema é que mesmo para isso teria que mudar sua base de apoio no Congresso, uma vez que a atual nunca permitiria uma guinada da  política econômica desse tipo. Ou seja, Massa criou uma armadilha para si mesmo e para a própria Argentina

Nesse sentido, se o melhor para o  Brasil é ver o nosso terceiro maior parceiro comercial voltar a crescer, ainda acho melhor torcer para a vitória de Milei, com todas as suas falas bizarras, inclusive sobre o Mercosul. Isso porque parte de suas propostas, além de caminhar na direção correta, estão menos distantes das ideias da maioria do Congresso argentino atual. 

Ou seja, é mais fácil para Milei ter um choque de realidade do que o próprio Massa; mesmo porque implementar apenas parte de suas propostas (como, por exemplo, privatizações) na situação atual da Argentina, certamente, representará um enorme avanço no meio de tanto caos econômico, além um imenso ganho político futuro.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 28/10/2023.”

terça-feira, 17 de outubro de 2023

COMO O CONFLITO NO ORIENTE MÉDIO PODE AFETAR A ECONOMIA BRASILEIRA

O efeito mais direto já tem sido percebido com a elevação do preço do barril do petróleo no mercado internacional

Muita gente tem me perguntado em que medida a guerra que se avizinha entre  Israel e os grupos terroristas Hamas e Hezbollah pode afetar uma possível recuperação da economia brasileira. Particularmente, entendo que ainda seja cedo para fazer qualquer previsão mais acurada, mesmo porque não sabemos ainda quanto tempo esse conflito poderá durar e onde acabará.

Mas, de toda forma, é possível esclarecer quais seriam os mecanismos de transmissão dos efeitos da guerra para a nossa economia . Em primeiro lugar, o efeito mais direto já tem sido percebido com a elevação do preço do barril do petróleo no mercado internacional.

Com isso, o preço do combustível no  Brasil (que está atrelado ao preço internacional) também aumentará, refletindo-se sobre os custos e preços de diversos produtos em toda a economia. Em última instância, o consumidor final será direta e indiretamente afetado.

O segundo efeito tem muito a ver com o aumento da percepção de risco no  mundo todo. Com isso, os investidores tenderão a correr para ativos de menor risco, tais como os títulos do tesouro americano. Isso, em particular, poderá implicar uma saída de recursos (dólares) do país, o que, por sua vez, provocará uma depreciação cambial, ou seja, o Real perderá ainda mais seu valor. Consequentemente, poderemos ter dois vetores em sentidos opostos.

Por um lado, como uma parte do nosso consumo é direcionado a produtos importados e o preço de determinados bens é cotado em dólar (principalmente porque algumas empresas têm seus custos definidos em dólares, como o caso do setor aéreo), o consumidor brasileiro será mais uma vez afetado negativamente com a elevação dos preços.

Por outro lado, a depreciação cambial pode tornar nossos produtos mais competitivos no mercado internacional, elevando as exportações e gerando mais renda para alguns setores específicos, principalmente, no caso de commodities, como alguns minerais e produtos agrícolas.

Note-se que o efeito líquido desses vetores é de difícil previsão. De toda forma, o suposto benefício do aumento das exportações ainda pode ser limitado por dois outros fatores.

O primeiro deles é que, se o produto exportado também for consumido por brasileiros, o redirecionamento de sua oferta para o mercado internacional provocará uma elevação de preços para o mercado doméstico.

Já o segundo fator tem relação mais direta com o próprio efeito do conflito no Oriente Médio. Se ele perdurar e se estender para outras áreas ou, mesmo, se elevar a sensação de incerteza e insegurança no mundo, o fluxo de comércio internacional poderá se reduzir. Isso porque tanto empresários como empregados tenderão a ser mais conservadores em suas respectivas decisões de investir e consumir.

É bom lembrar, ainda, que estamos com uma guerra em andamento na Europa (a da Ucrânia) e uma economia chinesa em crise (em grande medida associada aos problemas vivenciados no seu setor imobiliário).

Por outro lado, é verdade que os EUA têm dado sinais de que sua economia continua aquecida, o que poderia eventualmente estimular, em parte, o fluxo de comércio internacional. Mas, como a inflação por lá ainda está elevada, a tendência é que o FED (banco central americano) tenha que manter os juros elevados por mais tempo, revertendo a situação atual.

Ademais, dado o estoque da dívida pública americana, é de se esperar que, em breve, o “governo americano de plantão” seja obrigado a adotar uma política fiscal contracionista (cortar gastos público), o que ajudará a desaquecer a economia americana, com impacto negativo também sobre suas importações, inclusive sobre aquelas direcionadas a produtos brasileiros.

No fundo, o conjunto da obra no mundo mostra um cenário, no mínimo, muito desafiador para a economia brasileira, ainda mais se lembrarmos que o problema das nossas contas públicas está longe de ser solucionado.

Nesse contexto, o  conflito no Oriente Médio é só mais um ingrediente que reforça que tanto as expectativas inflacionárias como a própria inflação poderão não cair nos próximos meses (ou até mesmo voltar a subir), dificultando a continuação da queda da taxa Selic pelo Banco Central Brasileiro (BACEN).

Mais do que isso, como o atual governo reluta em fazer os tão necessários cortes nos gastos públicos, a tendência é que esse ciclo vicioso se perpetue, impedindo uma recuperação efetivamente sólida e contínua da nossa economia.

Fato é que, infelizmente, parece que o  presidente Lula ainda não entendeu que, ao contrário dos seus dois primeiros governos (2003-2011), tanto o cenário internacional quanto o doméstico se mostram muito piores, exigindo de sua parte atitudes mais responsáveis.

 “Texto publicado originalmente no portal IG em 17/10/2023.”

terça-feira, 10 de outubro de 2023

FALA DO MINISTRO DO TRABALHO SOBRE UBER É UM CONVITE À IRRACIONALIDADE

Luiz Marinho diz que, se a Uber quiser sair do Brasil, o 'problema' é da empresa

Na última semana, o atual ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou, durante audiência da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara, que se a  Uber quiser sair do país, é um problema da empresa e que outros concorrentes ocupariam o espaço deixado pela empresa.

Pior ainda, sugeriu que os  Correios poderiam estudar “um aplicativo de forma mais humana para trabalhadores que desejassem usar o aplicativo dos Correios, para poder trabalhar sem a neura do lucro dos capitalistas, que acontece com Uber, Ifood" etc.

Para além do próprio preconceito demonstrado ao setor privado, a fala do ministro é carregada de um conteúdo sem precedente de ignorância no sentido estrito da palavra. Isso porque ele demostrou um total desconhecimento sobre o modelo de negócio deste tipo de empresa, que envolve plataformas que atuam em um ambiente denominado, em economia, de mercado de dois ou mais lados.

E esse conceito está bem documentado, por exemplo, em estudo da  Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2009. Segundo a instituição, esses mercados são caracterizados por três elementos.

O primeiro deles é a presença de dois grupos distintos de “usuários” que dependem uns dos outros de alguma forma e que contam com uma plataforma para intermediar as relações entre eles. Uma plataforma de dois lados, por exemplo, fornece, simultaneamente, serviços a esses dois grupos.

No caso específico aqui discutido, a  Uber é a plataforma que coloca em contato motoristas e usuários de transportes. E, para isso, define um valor a ser pago pelo usuário com base na quantidade demandada e ofertada neste mercado a cada momento, e cobra um valor do motorista pelo serviço a ele prestado ao conectá-lo com o usuário transportado (uma espécie de taxa de desconto).

E essa discussão inicial indica que, longe de haver uma relação trabalhista entre Uber e motoristas, há sim uma relação de prestação de serviços por uma plataforma que interliga dois lados do mercado (usuários e motoristas), cobrando por isso dos motoristas. Note-se que a relação de trabalho que a Uber guarda de fato é com seus empregados diretos, das várias áreas dentro de sua empresa, e não com os motoristas.

O segundo elemento apontado pela OCDE é a existência do que se denomina “externalidades indiretas” entre os grupos que fazem uso da plataforma. Traduzindo, o valor que cada grupo atribui à plataforma cresce com o número de pessoas conectadas do outro lado. Assim, uma plataforma será tão mais interessante quanto mais gente estiver a ela conectada, o que exige um trabalho não trivial de investimentos constantes na plataforma, de maneira a mantê-la sempre interessante a todos os envolvidos.

O terceiro elemento é a ausência de neutralidade na estrutura de preços, ou seja, a escolha entre cobrar mais de um lado ou de outro do mercado pode afetar a quantidade de transações e, consequentemente, o lucro e bem-estar da sociedade.

Considerando esses dois últimos aspectos, qualquer interferência governamental que imponha algum custo adicional à plataforma ou restrição à sua forma de definição de preços poderá implicar três movimentos. O primeiro será uma recalibração dos níveis de preço(s) cobrado(s), quando isso não for limitado. O segundo será um desincentivo a investimentos em inovação. O terceiro, até mesmo um desincentivo a permanecer no negócio.

Seja qual for o efeito gerado (inclusive podendo ser uma combinação dos três movimentos acima descritos), o nível de transações se reduzirá, gerando uma perda para todos os envolvidos. Menos usuários usando a plataforma, menos corridas, menos recebimento para motoristas e menos lucro para a plataforma.

No limite, o custo imposto pelo Estado poderá sim inviabilizar o negócio não só para a Uber mas para outros atuais ou potenciais concorrentes. Em realidade, a fala do ministro do Trabalho desconsidera esse efeito, inclusive para os próprios motoristas, exatamente por não entender como esse mercado funciona.

Também desconsidera os efeitos aos “consumidores” dos serviços de transporte, seja porque a imposição de custos maiores certamente elevará diretamente os preços definidos pela Uber, seja porque esse movimento reduzirá a capacidade das plataformas de competir com os táxis, por exemplo.

Por fim, o ministro erra ainda ao pressupor que os Correios resolverão o problema. Criar uma plataforma deste tipo envolve investimentos pesados e constantes em tecnologia, conhecimento de mercado, atualizações de segurança, melhorias de prestação de serviços, busca por serviços adicionais, etc.

Isso não é algo trivial e, na melhor das hipóteses, sendo muito otimista, imporá um custo de oportunidade elevado para uma empresa estatal que mal consegue dar conta de suas obrigações. Ou seja, desviar o foco dos Correios de seu core business ("negócio principal", em tradução livre) só reforça uma visão deturpada da realidade que vivemos hoje, principalmente em um país com o nível do déficit público vigente.

No fundo, a fala do ministro do Trabalho, seja por razões populistas ou pela total incapacidade de entender do que estamos tratando, foi muito irresponsável. Se levada adiante, criará mais uma fonte de insegurança jurídica para novos investimentos em um momento no qual o país precisa, urgentemente, gerar novos empregos. 

“Texto publicado originalmente no portal IG em 10/10/2023.”

terça-feira, 3 de outubro de 2023

POR QUE O ESTADO É UM DOS MAIORES RESPONSÁVEIS PELOS JUROS ELEVADOS

Quando o governo gasta mais do que arrecada continuamente acaba gerando inflação

Com frequência assistimos a discursos inflamados de políticos de várias vertentes dizendo que as taxas de juros no Brasil são absurdas (para dizer o mínimo) e culpam os banqueiros (“gananciosos”) e até o presidente do Banco Central do Brasil (BACEN) por esse resultado. Em particular, até o presidente da República tem se esmerado em fazer tais afirmações.

O grande problema é que, seja por ignorância (no sentido estrito da palavra) ou por puro populismo, nenhum deles toca nos reais motivos pelos quais nossa taxa de juros é realmente elevada. Em verdade, para entender o problema, precisamos ter em mente ao menos três questões.

A primeira, que os bancos são intermediários financeiros que colocam poupadores em contato com quem necessita de crédito. Assim, tirando a parte do dinheiro que fica em suas respectivas tesourarias (dinheiro da própria instituição), todo o resto é recurso dos poupadores, que incluem pequenos investidores, pessoas da classe média e até mesmo fundos de pensão. Ou seja, a ideia de que só os ricos e banqueiros ganham com os juros elevados é um tanto quanto falaciosa.

A segunda questão a se entender é que os juros nada mais são do que o preço do dinheiro. Assim, se existe muita demanda para pouca oferta de crédito, a tendência é que esse preço suba e vice-versa. Ademais, se o risco de se emprestar se elevar, é natural que poupadores exijam remunerações mais elevadas (juros mais altos) para emprestar. 

O terceiro ponto a ter-se em mente é que toda transação financeira envolve custos, tais como aqueles associados à parte operacional da instituição financeira, à captação do dinheiro, à inadimplência, à tributação, etc. É natural, portanto, que a instituição procure cobrir esses custos e receber um spread (lucro) no processo de intermediação, pois, do contrário, não teria sentido realizar empréstimos. Obviamente que quanto maior o nível de concorrência em cada segmento financeiro, menor será o spread bancário. 

Mas, para além desses aspectos, é importante entender que o Estado é o maior responsável pelos juros elevados no país. Em primeiro lugar porque, ao gastar mais do que arrecada continuamente, acaba criando um excesso de demanda no mercado por bens e serviços na economia, o que implica gerar inflação.

E para corrigir esse processo, o Banco Central, por meio da política monetária, é obrigado a elevar os juros primários na economia (a taxa Selic), desestimulando o consumo dos demais agentes econômicos (inclusive com efeitos ruins sobre o nível de emprego e investimentos).

A permanência de déficits constantes, quando não cobertos por tributação adicional, também obriga o governo a ir ao mercado contrair empréstimos por meio de títulos públicos, elevando-se, assim, a demanda por crédito no mercado e, consequentemente o preço do dinheiro (juros).

Vejam que o aumento da dívida, ao longo do tempo, cria uma percepção ruim de que, no futuro, o governo possa não honrar esse compromisso. Em outras palavras, a percepção do risco de um calote futuro pode fazer com que os investidores (poupadores) exijam juros mais altos para financiar o Estado, o que também impacta negativamente todo o mercado de crédito.

Nessa mesma linha, devemos lembrar que o risco também se eleva quando o Legislativo resolve apresentar propostas esdrúxulas sobre controle de juros (como o recente aprovado Projeto de Lei do Desenrol a – PL 2.685/22) ou quando, no âmbito do Judiciário, temos decisões contraditórias e que, a pretexto de proteger o consumidor, criam uma enorme insegurança jurídica ou que caminham no sentido de dificultar a recuperação do crédito concedido. E, novamente, em um ambiente de risco mais elevado, os poupadores tendem a ofertar menos dinheiro ou exigir maiores taxas. 

E tudo isso sem falar das distorções criadas pelo governo que, por exemplo, usa seus bancos públicos para fornecer juros subsidiados a setores privilegiados, inclusive com dinheiro do trabalhador e do contribuinte. Um bom exemplo é o caso do BNDES, que, durante anos, atuou dessa maneira, inibindo qualquer tentativa de se criar um mercado de crédito de mais longo prazo no país, que, ao longo do tempo, permitiria também baixar os juros neste segmento de mercado.

Então, diante desse quadro, qual seria a prescrição adequada para baixar os juros no país? Em primeiro lugar, o Estado deveria corrigir sua trajetória das contas públicas. Ao fazer isso, tornar-se-ia um componente a menos de pressão inflacionária, demandaria menos recursos no mercado financeiro e minimizaria a percepção de risco dos agentes econômicos.

Em segundo, deveria rever mecanismos de atuação no mercado financeiro que só geram distorções e passar a estimular a criação de um mercado de crédito de longo prazo, principalmente voltado à infraestrutura.

Em terceiro, trabalhar fortemente em legislações que favoreçam a recuperação do crédito e exercer um papel de advocacy (promotor de ideia racionais) junto ao Judiciário, no sentido de esclarecer o risco de decisões baseadas apenas em “argumentos consumeristas” (sem qualquer base econômica) se tornarem um tiro no pé do próprio consumidor. Mais do que isso, demonstrar que garantir a segurança jurídica é condição indispensável para se reduzir mais efetivamente os juros no país.

Em quarto lugar, ser mais ativo em áreas relacionadas à defesa da concorrência e concorrência regulatória, impedindo definitivamente concentrações excessivas e punindo com mais rapidez e rigor condutas anticompetitivas. Aqui cabe uma ação mais integrada entre CADE e BACEN.

Em quinto, investir mais na correção de assimetrias informacionais no mercado financeiro e, principalmente, em educação financeira, fazendo uso dos órgãos de defesa do consumidor e do próprio Bacen. Note-se que quanto mais informados e preparados estiverem os tomadores de crédito sobre a dívida que estão contraindo e sobre suas reais capacidades de pagamento, menor a chance de os bancos cobrarem juros mais elevados.

Claro que essas não são medidas de curto prazo, mas são aquelas que, no final do dia, resolverão de vez o problema do alto custo do dinheiro no país.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 3/10/2023.”