terça-feira, 30 de abril de 2024

PEC DO QUINQUÊNIO PROVA QUE PRECISAMOS PASSAR NOSSO JUDICIÁRIO A LIMPO

Sob o ponto de vista econômico, essa proposta carrega dois problemas

Encampada pelo presidente do Senado (o advogado  Rodrigo Pacheco do PSD de Minas Gerais), foi aprovada nesta semana na Comissão de Constituição e Justiça do Senado a denominada PEC do Quinquênio (PEC nº 10/2023), que traz de volta um privilégio há muito tempo extinto. Pelo texto em discussão, será criado um adicional de 5% do salário recebido para cada cinco anos trabalhados. Esse privilégio poderá ser recebido por agentes públicos de carreiras jurídicas. Mais especificamente, os agraciados com isso são os de sempre: juízes, membros do Ministério Público, defensores e advogados públicos, delegados de polícia e ministros dos Tribunais de Contas.

Por si só, essa proposta já é um absurdo, na medida em que só amplia a diferença de salários de uma casta privilegiada da sociedade dos demais funcionários públicos e, principalmente, do setor privado. Pior ainda é a desculpa de alguns políticos para o encaminhamento dessa proposta.

Uns falam que é uma forma de incentivar que esses profissionais permaneçam no serviço público, como se os salários recebidos fossem baixos. Outros, como o caso do próprio presidente do Senado, afirmam que essa seria a contrapartida para acabar com os penduricalhos pagos no Judiciário, que hoje suplantam o teto do funcionalismo e criam os supersalários. Como se a solução para um flagrante descumprimento da lei fosse mudar a lei para manter o privilégio.

Fato é que, sob o ponto de vista econômico, essa proposta carrega dois problemas. O primeiro é que cria mais um rombo nas contas públicas, já tão debilitada por outros absurdos na gestão da coisa pública. E como tenho escrito nesta coluna, o resultado será mais inflação no longo prazo, que afetará os mais pobres, que não têm mecanismos de defesa contra a inflação como os nossos potenciais agraciados com essa PEC.

O segundo problema econômico está relacionado aos incentivos gerados. Em vez de se criar critérios de produtividade para eventuais remunerações adicionais que se pretenda incorporar, essa PEC equaliza todos os profissionais, sem premiar aqueles que, de fato, sejam mais produtivos. Por óbvio, o que faremos é desestimular a busca por eficiência nessas carreiras, uma vez que ninguém terá motivo para individualmente ser mais produtivo. 

Note-se que, ao contrário do que escreveu recentemente o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, em um artigo intitulado “Quanto vale o Judiciário”, temos sim hoje um Judiciário caro e ineficiente.

Por exemplo, em “Raising Productivity Through Structural Reforms in Brazil”, Jens Matthias Arnold e Robert Grundke mostram que o nosso Judiciário é um dos mais caros (como proporção do PIB) e mais ineficientes do mundo.

Há que se destacar que eficiência não se mede por quantidade de casos julgados, como quis fazer parecer o presidente do STF, mas sim com outros critérios objetivos como, por exemplo: tempo de julgamento, consistência nas decisões e formação e consolidação de boas jurisprudências, algo que o próprio Supremo está bem longe de demonstrar.

Aliás, o que temos infelizmente observado em nossa “Corte Máxima” é uma sequência de absurdos que passam por atropelos ao devido processo legal, decisões heterodoxas cujo texto legal é objetivo, mudanças casuísticas de decisões anteriores para atender questões momentâneas, ausência de jurisprudências fortes, que oriente cortes inferiores, envolvimento em ambiente político, ministros falando fora dos autos do processo e até mesmo antecipando posições sobre eventuais casos a serem julgados, dentre outros problemas.

Por óbvio que, como em toda categoria, nas carreiras jurídicas de Estado existem bons profissionais que merecem ser recompensados. Eu mesmo tenho tido experiências com excelentes juízes e outros funcionários públicos que seriam exemplos a serem seguidos em qualquer lugar do mundo.

Mas quando vejo a qualidade de várias decisões, o comportamento de alguns profissionais ou mesmo o envolvimento de determinadas corporações jurídicas com o setor privado (por exemplo, recebimento de financiamento para realização de seminários, pagamento de viagens, etc.) e com o meio político, tenho para mim que precisamos passar o Judiciário a limpo para o bem da nossa sociedade. 

Há sempre a desculpa de que as nossas leis são uma grande parte do problema e que o nosso sistema judiciário, da maneira como foi concebido, é muito ruim, mas nada justifica o que temos presenciado no país. Na realidade, esses argumentos só reforçam a necessidade de irmos a fundo nos problemas e criarmos uma governança mais forte e transparente para a sociedade, inclusive para preservamos os bons profissionais.

E, possivelmente, um bom começo seria criarmos critérios mais rígidos para a escolha dos ministros das cortes superiores, semelhantes, por exemplo, àqueles definidos no artigo 42 da Lei das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019), inclusive no que diz respeito à vedação de indicações definidas no “Art. 8º-A. Com isso, estaríamos blindando os tribunais superiores de qualquer influência política.

Fato é que a PEC do Quinquênio só escancara o quanto nosso sistema judiciário tem sido cada vez mais parte do problema e não das possíveis soluções para o país. Mais do que isso, pelo processo em curso no Congresso, ela mostra que precisamos entender de uma vez por todas que harmonia entre os poderes não pode e não deve ser confundida com “conchavo entre poderes”.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 30/4/2024.”

terça-feira, 23 de abril de 2024

POR QUE A COMPRA DA GOL PELA AZUL PODE NÃO SER TÃO SIMPLES?

Na maioria das vezes, muito otimismo costuma ser um sinal de desinformação

Na última semana começou a circular na imprensa nacional e até internacional que a venda da Gol para a Azul estaria bem encaminhada. Mais do que isso, pelo que eu li, a Azul estaria otimista que “poderia obter a aprovação do órgão regulador - Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) - e da concorrência - Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Tenho para mim que, na maioria das vezes, muito otimismo costuma ser um sinal de desinformação e, portanto, o caminho mais curto para tomar decisões equivocadas. Aliás, bastaria ler um estudo do Cade de 2017, intitulado “Mercado de Transporte Aéreo de Passageiros e Cargas”, para se perceber que a aquisição da Gol não será fácil de ser aprovada. Nesse documento, o órgão foi bem claro em levantar uma série de problemas estruturais no setor, inclusive que justificasse mais preocupação com futuras concentrações econômicas.

Claro que qualquer análise a ser empreendida na área da concorrência deve ser realizada caso a caso, sendo que o nível de concentração, por si só, diz muito pouco sobre os potenciais efeitos anticompetitivos da operação. Mas não há como se negar que a união entre essas duas empresas suscita dúvidas razoáveis.

Em primeiro lugar, pela presença de sobreposição de rotas voadas pelas duas companhias, pela concorrência entre redes a partir de aeroportos distintos e porque as duas oferecerem programas de fidelidade. Esses aspectos constituem pré-condição para se exigir uma análise mais aprofundada do caso.

Ato contínuo, o Cade deverá avaliar a possibilidade de novas firmas entrarem no mercado e garantirem que a aquisição não permitirá às firmas remanescentes elevarem o preço no mercado. No jargão antitruste, isso envolve a avaliação das condições de entrada.

E, nesse aspecto, é fundamental avaliar as oportunidades de demanda disponíveis no mercado para a nova firma vis-à-vis a escala mínima viável necessária para que ela entre em cada rota. E isso implica, inclusive, avaliar quais são as barreiras à entrada observadas no mercado. E nesse caso, vale lembrar que o estudo do Cade aqui citado indica a presença de barreiras legais, de infraestrutura em aeroportos coordenados (congestionados) e altos níveis de investimento para a operação.

Particularmente entendo que a maior barreira à entrada é hoje a ausência de slots (espaço de tempo para pouso e decolagem em aeroportos coordenados) disponíveis em determinados aeroportos que poderiam viabilizar mais rapidamente o surgimento de novas empresas, na medida em que permitiriam rentabilizar mais rapidamente a entrada.

Aliás, tudo indica que a Azul está exatamente atrás dos slots da Gol, podendo até reduzir futuramente o número de voos e rotas de outros aeroportos no qual atua hoje. Nesse sentido, exigir que a Azul abra mão de slots em aeroportos coordenados poderia ser uma das formas de minimizar potenciais efeitos anticompetitivos, inclusive porque há limitações regulatórias para a quantidade detida por empresas, conforme destacado na Resolução da ANAC Nº 682 de 2022. O problema é saber se empresarialmente isso faria sentido.

De toda forma, é bem provável que a Azul levante dois argumentos como contraponto no Cade: (i) o de que a compra criará uma empresa mais eficiente; e (ii) que a Gol pode quebrar, caso não seja adquirida.

Entretanto, essas duas teses podem ter pouco sucesso se os critérios contidos no  Guia de Análise de Concentrações Horizontais do Cade forem seguidos. Esse documento, totalmente aderente à experiência internacional, traça as linhas mestras de análise do órgão.

Nele está claro que a alegação de ganhos de eficiência só será aceita se for específica da operação, ou seja, se as eficiências apresentadas puderem ser obtidas por esforço ou alterações internas da própria empresa, por meio de uma fusão com outra firma que gere menos danos à concorrência ou por quaisquer outras alternativas menos danosas para o mercado, elas não devem ser aceitas.

Em outras palavras, se uma eventual reestruturação da Gol (como tem sido feita) ou mesmo a possibilidade da compra por outra empresa com menos participação no mercado brasileiro gerarem as mesmas eficiências, a operação com a Azul não deverá ser aprovada. E, nessa linha, também já há especulação sobre terceiros interessados na compra da Gol.

Vale lembrar ainda que a aceitação da alegação de ganho de eficiência exige um padrão elevado de prova (não podendo ser meramente especulativa) e não deve refletir apenas ganhos pecuniários para a nova empresa formada, decorrentes de aumento do seu poder de mercado diante de seus consumidores.

Já com relação à alegação da possibilidade de a Gol quebrar (tese da firma falida), a prática internacional e a jurisprudência do Cade têm sido extremamente cautelosas, restringido sua aceitação a casos em que sejam comprovadas, cumulativamente, três condições.

A primeira, que a empresa sairia do mercado ou não poderia cumprir suas obrigações financeiras em decorrência de suas dificuldades econômicas e financeiras. A segunda, que os ativos da empresa sairiam do mercado, reduzindo a oferta, elevando ainda mais o nível de concentração do mercado e diminuindo o bem-estar econômico. E a terceira, que já tenham sido empreendidos esforços na busca de alternativas com menos danos à concorrência (por exemplo, por meio de compradores alternativos ou de um processo de recuperação judicial), não restando outra solução para a manutenção de suas atividades econômicas.

Em outras palavras, o Cade deveria concluir que os efeitos antitruste decorrentes da reprovação da operação (inclusive da provável falência da empresa) seriam piores que a concentração gerada pela operação, sendo que o ônus da prova recairá sobre a Azul. E isso não será uma tarefa fácil, principalmente porque a Gol ainda está em processo de recuperação judicial sem que ainda saibamos onde isso a levará.

Vale lembrar ainda que tanto a Gol como a Azul apresentam hoje um nível de alavancagem (endividamento) bem elevado. E, neste caso, far-se-ia necessário se perguntar se uma união entre as duas não criará uma firma do setor aéreo “grande demais para quebrar”, que exigirá uma intervenção de salvamento estatal com um custo muito elevado para toda a sociedade.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/4/2024.”