sexta-feira, 22 de julho de 2022

O PROBLEMA NÃO SÃO AS URNAS ELETRÔNICAS, MAS SIM O NOSSO SISTEMA POLÍTICO

 

Confesso que tenho acompanhado com muito tédio a discussão proposta pelo presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) sobre a real confiabilidade das nossas urnas eletrônicas. Não que eu entenda que nossa democracia esteja totalmente segura, mas apenas vejo que o foco do problema está em outros locais e não no sistema eletrônico de votação.

Carregamos um modelo já deturpado desde a época da ditadura, que não foi corrigido pela nossa Constituição Federal (CF). Isso porque, em seu parágrafo primeiro, artigo 45, nossa “carta magna” estabelece um mínimo de 8 e máximo de 70 deputados por estado. Com isso, criou-se uma sub-representatividade de alguns estados e super representatividade de outros.

São Paulo, por exemplo, tem 21,87% da população do país e apenas 13,65% de deputados. Já Roraima, com uma população de 0,31%, tem 1,56% de representantes na Câmaras dos Deputados. Com isso, o voto de um paulista radicado em Roraima tem um peso, em termos representativos, oito vezes maior do que o voto de um roraimense que vive em São Paulo.

Há que se ter clareza que a representatividade dos estados, enquanto unidade federativa em um modelo bicameral, dá-se no Senado, não havendo, portanto, qualquer justificativa para mantermos o status quo. Mas este é só um aspecto dentro tantos outros problemas que temos criado ao longo do tempo.

Para expor meus argumentos, valho-me inicialmente de dois pressupostos econômicos. O primeiro envolve o fato de que quanto menores forem as barreiras à entrada nos mercados, maior será a concorrência, fazendo com que as empresas incumbentes se esmerem em atender melhor o consumidor (por exemplo, ofertando melhores produtos e serviços a custos mais baixos).

Já o segundo está associado à ideia de que a inexistência de assimetria informacional (ou seja, mais transparência sobre as características e preços dos produtos ofertados e sobre as próprias firmas) faz com que o consumidor realize escolhas melhores, mais adequadas aos seus desejos, induzindo as empresas a serem mais eficientes e oferecerem o que o mercado quer de fato.

No limite, a total ausência de barreiras à entrada e a transparência plena tornam os mercados mais eficientes, gerando uma concorrência mais efetiva e justa, além de permitir melhores escolhas por parte dos demandantes. E o mercado político (de decisões legislativas, regulatórias, etc.) não é muito diferente disso.

Nesse ambiente, podemos entender as leis como o produto derivado da interação entre demandantes (o conjunto da sociedade, representado pelos eleitores) e ofertantes (políticos que escrevem e aprovam as leis). E esse produto será tanto melhor quanto mais os ofertantes se esmerarem em atender aos verdadeiros anseios de seus demandantes.

Mas para que isso ocorra, devem prevalecer os dois pressupostos econômicos destacados anteriores. Assim, quanto mais informação os eleitores tiverem sobre a verdadeira capacidade e intenção dos candidatos, maior a probabilidade de realizarem boas escolhas e, consequentemente, maior a chance de o resultado legislativo ser positivo.

Na mesma linha, quanto maior for o número de candidatos disponíveis (em condições isonômicas de concorrência) nas eleições, mais cada candidato se esforçará para convencer e atender aos anseios dos eleitores, principalmente em um ambiente de transparência plena sobre sua vida pregressa e seus atos públicos e políticos.

Infelizmente esses dois pressupostos têm sido atacados de todos os lados por aqui. Por exemplo, os fundos eleitoral e partidário bilionários têm criado uma discrepância muito grande entre os grandes partidos já estabelecidos, que carregam ideias arcaicas e são guiados pelos grandes caciques, e aqueles menores e novos, que podem arejar o ambiente político com novas ideias.

É como se os políticos da velha guarda tivessem clareza que estão criando uma forte barreira à entrada no mercado político, tornando seus atos menos contestáveis a novas visões; sem falar que uma boa parte desse dinheiro é destinado a desperdícios com publicidade sem sentido, jatinhos, viagens e até mesmo com bancas de advogados para se defenderem de crimes eleitorais.

E o pior de tudo é que as reformas políticas que tramitam no Congresso caminham no sentido de elevar ainda mais as barreiras à entrada; e isso sob o pretexto de reduzir o número de partidos pequenos, para evitar os efeitos deletérios do modelo político que chamam erroneamente de “presidencialismo de coalisão”, mas que, na realidade, nada mais é do que um “toma lá dá cá”.

Entretanto, vale lembrar que “mensalões”, “petrolões” e, mais recentemente, o escárnio do caso do “Orçamento Secreto”, envolvem majoritariamente a “compra enrustida de votos” de políticos de grandes partidos, e não dos pequenos, que não têm muita força para alterar votações no Congresso.

Em outras palavras, cláusulas de barreiras, principalmente em um país como o nosso, cujas leis criminais para políticos têm sido fortemente enfraquecidas, além de não resolver os problemas de corrupção, só reforçam a situação atual e inibem a concorrência de novos políticos.

E por falar em “Orçamento Secreto”, como o próprio nome já diz, sua dinâmica de liberação de verbas dificulta que os eleitores saibam quais deputados estão manipulando recursos públicos e para quais fins. Ou seja, a ausência de informação clara tem passado longe do nosso atual Congresso, dificultando que os eleitores separem o “joio do trigo”.

Ainda neste capítulo, “menção honrosa” cabe ao chamado “quociente eleitoral”, regra criada para limitar o número de partidos, mas que permitiu que deputados com poucos votos e expressividade política sejam eleitos pegando carona nos votos de “tiriricas da vida”, sem que o eleitor previamente saiba disso no seu processo decisório.

Poderia discorrer sobre outros aspectos, mas o fato é que nosso “mercado político” e, portanto, nossa democracia, não tem funcionado de maneira eficiente, muito por conta das distorções criadas pelos nossos próprios congressistas. Mas isso de maneira alguma tem qualquer coisa a ver com nosso sistema de urnas eletrônicas.

“Texto publicado originalmente no UOL em 22/7/2022.”


sexta-feira, 15 de julho de 2022

CONCESSÃO DO MERCADÃO PODE VIRAR EXEMPLO PARA REVITALIZAÇÃO DO CENTRO DE SP

 

Há alguns meses, o Mercado Municipal de São Paulo – Mercadão, apareceu no noticiário televisivo de forma negativa, dada a atitude agressiva de alguns vendedores que procuravam enganar os consumidores. Felizmente este comportamento criminoso, que se diga de passagem não é a regra, tem sido combatido coordenadamente pelos Procons e até pela Concessionária.

Fato é que há muito mais coisas positivas acontecendo por lá, mas que têm sido deixadas de lado pela imprensa em geral. Para quem não sabe, o Mercado

Municipal é um patrimônio histórico. Projetado pelo engenheiro Felisberto Ranzini, o mesmo responsável pelo Teatro Municipal e pela Pinacoteca, foi inaugurado em 1933, para ser um entreposto comercial de atacado e varejo. Antes disso, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, serviu como depósito de munições.

Ao longo do tempo, este equipamento também se tornou um lugar de lazer para os paulistanos e um ponto turístico para quem não é da cidade. Infelizmente esse prédio histórico acabou por se deteriorar ao longo do tempo, principalmente por falta de recursos públicos. Mas a boa notícia é que, em julho de 2020, foi realizado um leilão para sua concessão à iniciativa privada.

O consórcio vencedor (Novo Mercado Municipal), que também levou o mercado da Cantareira, pagou ao todo R$ 112 milhões para exploração dos dois espaços por 25 anos (mais de 3 vezes o valor mínimo de referência). Ademais, comprometeu-se com investimentos da ordem de R$ 70 milhões entre a restauração e as reformas no prédio do Mercadão e do Mercado Kinho Yamato.

De maneira clara, logo de saída, o setor público ganhou duas vezes. Em primeiro lugar, por arrecadar recursos para o caixa da Prefeitura, que poderão ser utilizados para o bem da sociedade. Em segundo, por também economizar recursos que deveriam ser direcionados para a revitalização do equipamento público em questão.

E isso sem falar que, ao delegar a gestão do Mercadão à iniciativa privada, a Prefeitura deixa de incorrer no custo de oportunidade de ter que alocar pessoas e recursos para gerenciar os típicos problemas que envolvem a relação existente entre o administrador e os até então permissionários do local.

Mas os ganhos para o Estado e para a sociedade não se limitam a esses dois aspectos. Ao recuperar um prédio tão importante, a tendência é que haja muito muito mais movimentação na região, gerando a possibilidade de mais negócios, criação de empregos e até mesmo arrecadação de tributos.

No fundo, o Mercadão tem um potencial imenso de gerar externalidades positivas para toda a região, incentivando, inclusive, novos investimentos nas proximidades e a revitalização de uma área tão degradada ao seu redor. Quem já esteve por lá sabe que existem prédios próximos quase desabando, que são subutilizados.

O ponto aqui é entender que o bom funcionamento do Mercadão atrairá mais empresários interessados em “pegar carona” no aumento da movimentação gerado por esse espaço público. E isso não será nenhuma novidade, uma vez que em todos os lugares onde esse processo de revitalização se consolidou, os resultados foram sempre os melhores possíveis.

É como criar um jogo de “ganha-ganha” e estimular um “círculo virtuoso”, no qual empresário, setor público e a sociedade no entorno acabarão por se beneficiar das melhorias gradativamente implementadas. Mas para que isso ocorra, é fundamental que o Mercadão seja de fato viabilizado, algo que não depende apenas da iniciativa privada.

Sendo mais claro, esse espaço público tem sido afetado constantemente por problemas derivados das atividades no seu entorno (externalidades negativas) e pela falta de uma infraestrutura adequada, cuja obrigação de provimento é do Estado.

Existe hoje, por exemplo, uma feira de rua não legalizada, que vende todos os tipos de produtos, e que inviabiliza o funcionamento do Mercadão no período noturno, na medida em que dificulta o seu acesso. Com isso, a Concessionária perde a oportunidade de gerar negócios no seu interior, como levar restaurantes mais sofisticados, que dependem de funcionamento noturno.

Ademais, essa feira, como constituída, acaba por afastar potenciais clientes do Mercadão, dado que dificulta implementar um esquema de segurança pública mais crível na região, que permita o acesso seguro de potenciais clientes. Não por outra razão, são observados constantes furtos na região.

É de conhecimento público, também, que a região do Mercadão sofre constantemente com enchentes, principalmente durante o verão, algo que, além de dificultar o acesso ao prédio, acaba por provocar problemas estruturais, como o desabamento de parte do estacionamento observado no início do ano.

Fato é que hoje o Mercadão sofre pela existência de problemas derivados da omissão do Estado de todos os tipos. Desde a falta de fiscalização de atividades irregulares ao seu redor, passando pela ausência de investimentos públicos mínimos adequados em infraestrutura e chegando, até mesmo, à insuficiência de plano de segurança pública na região.

Se a Concessionária atual pagou pelo direito de prestar o serviço e deve levar adiante toda as inversões exigidas contratualmente, é natural e desejável que ela busque criar fontes de receitas para recuperar o investimento realizado. E ao fazer isso, ela gerará mais renda e mais imposto, estimulando, inclusive, que novos investimentos sejam levados para a região.

Só que para que isso ocorra, o Estado deve cumprir o seu papel, mesmo porque, como já destacado, ele também terá muito a ganhar. Se nada for feito nesse sentido, é possível que as “externalidades negativas” hoje observadas na região acabem por impedir que surjam as “externalidades positivas”, que podem ser criadas a partir do belíssimo Mercado Municipal Paulistano.

Para o bem da região e da cidade, espero que tanto Prefeitura quanto o Governo do Estado entendam que têm um papel fundamental no processo de revitalização dessa região, cujo resultado poderá, inclusive, servir de exemplo para outras áreas de São Paulo.

“Texto publicado originalmente no UOL em 15/7/2022.”


terça-feira, 5 de julho de 2022

SENADO FOI IRRESPONSÁVEL AO APROVAR MAIOR COMPRA DE VOTOS JÁ VISTA NO PAÍS

 

Na última semana, foi aprovada no Senado a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 01/2022), de autoria do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), que institui o Estado de Emergência no Brasil. A intenção foi permitir ao presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) elevar os gastos públicos em R$ 41,25 bilhões até o final do ano, acima de seu teto permitido.

Travestida de uma preocupação em minorar os efeitos ruins do aumento do preço internacional do petróleo e da guerra da Ucrânia sobre os mais pobres, essa PEC nada mais é do que uma maneira desesperada encontrada pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro de criar, de maneira enrustida, o maior programa de compra de votos jamais visto no país.

Com justificativas toscas de que o país tem obtido superávit fiscal neste ano e que existem recursos disponíveis para isso relacionados a dinheiro advindo do petróleo, na prática, esse gasto adicional, sem cortes em outras despesas possíveis (como fundos eleitorais e partidários), sepulta definitivamente o teto dos gastos, a regra de ouro e afasta regras previstas na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Já expliquei nesta coluna que esse suposto superávit observado neste ano é uma ilusão arrecadatória não sustentável e baseada no chamado imposto inflacionário e na elevação temporária de alguns preços na economia, como o dos combustíveis.

Quanto aos recursos derivados do próprio petróleo elencados pelo relator na sua exposição de motivos, esses tecnicamente deveriam ser utilizados como uma poupança do país, seja para evitar flutuações cambiais derivadas de um eventual forte crescimento futuro da exportação do petróleo, seja como compensação a gerações futuras, principalmente em tempos de “vacas magras”.

Mas essa discussão já se perdeu definitivamente em 2010, quando o Congresso criou o Fundo Social. Na realidade, o que os nossos congressistas têm reiteradamente feito é, a exemplo da previdência pública, deixado dívida, e não poupança, para as futuras gerações de brasileiros. E a proposta do relator foi apenas mais do mesmo.

Não por outra razão, o mercado já começou a precificar o que vem pela frente, com a elevação do dólar, queda da bolsa e aumento dos juros futuros. No fundo, esse movimento acabará por desancorar as expectativas, fazendo com que o Banco Central mais uma vez seja obrigado a elevar juros e ampliar o período pelo qual ele permanecerá alto.

A expectativa, com isso, é que a trajetória das contas públicas tenda a piorar substancialmente a partir do próximo ano, seja por um processo de redução da arrecadação futura, com o agravamento da crise, seja pelo aumento dos gastos públicos, associados à pressão por aumento de salários do funcionalismo e à elevação de juros, por exemplo.

E isso sem falar que, se entrarmos em uma nova recessão global, a tendência é que o câmbio deprecie ainda mais. Fato é que se não controlarmos rapidamente o montante e a qualidade dos gastos públicos, o país continuará a ter uma inflação elevada, prejudicando exatamente os mais pobres que, cinicamente, nossos políticos dizem querer proteger neste momento.

Infelizmente o claro sinal que foi dado com a PEC do Estado Emergencial é o de que o país não tem qualquer compromisso com a responsabilidade fiscal, e isso foi mostrado por 72 Senadores de partidos de todas as vertentes políticas. Apenas o Senador José Serra (PSDB-SP) teve a coragem de votar contra essa insanidade.

Politicamente é fácil entender a posição do Centrão neste momento, que está atualmente no governo e que quer fazer de tudo para que o atual presidente se reeleja. Ou seja, apenas Centrão sendo Centrão.

Também é fácil entender a posição do PT e dos demais partidos da chamada “oposição de esquerda”, na medida em que essa PEC abriu um forte precedente para que o próximo presidente faça exatamente o mesmo. Aliás, se isso tivesse sido feito durante o governo Dilma, provavelmente ela não teria sofrido o impeachment, dado que as bases legais não mais existiriam para tanto.

Já a posição de outros partidos, do qual faz parte, por exemplo, a candidata Simone Tebet (MDB-MS), que votou a favor da PEC, implicitamente indica um mix de covardia com puro populismo irresponsável. Mas a pior posição de todas foi a do PSDB, criador da LRF, que, com essa votação, jogou de vez seu histórico de compromisso com a responsabilidade fiscal na lama.

Todos esses políticos podem até argumentar que o que se votou agora foi uma medida temporária, cujo gasto não se estenderá ao longo do tempo. Só que uma grande parte dessas medidas não deve ser temporária, uma vez que qualquer transferência de renda criada nunca ou quase nunca é cortada no futuro. No fundo seria como se tentar “’colocar a pasta de dente de volta no tubo”.

Mas pior do que isso é realmente o fato do precedente criado e da perda de credibilidade do país. Sempre se poderá argumentar que existe uma razão emergencial para se elevar os gastos, sem se preocupar em avaliar a possibilidade de realocação dos gastos já existentes.

E se lembrarmos das declarações do candidato que está na frente nas pesquisas eleitorais, é bem provável (para não dizer quase certo), que, caso seja eleito, apresente o mesmo argumento nos próximos anos, principalmente porque terá que lidar com uma crise econômica gravíssima.

 O grande problema é que esse caminho, além de só agravar a crise econômica, poderá nos levar ainda a uma enorme crise social e institucional.

“Texto publicado originalmente no UOL em 5/7/2022.”