Confesso que tenho acompanhado com muito
tédio a discussão proposta pelo presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) sobre a real
confiabilidade das nossas urnas eletrônicas. Não que eu entenda que nossa
democracia esteja totalmente segura, mas apenas vejo que o foco do problema
está em outros locais e não no sistema eletrônico de votação.
Carregamos um modelo já deturpado desde a
época da ditadura, que não foi corrigido pela nossa Constituição Federal (CF).
Isso porque, em seu parágrafo primeiro, artigo 45, nossa “carta magna”
estabelece um mínimo de 8 e máximo de 70 deputados por estado. Com isso,
criou-se uma sub-representatividade de alguns estados e super
representatividade de outros.
São Paulo, por exemplo, tem 21,87% da
população do país e apenas 13,65% de deputados. Já Roraima, com uma população
de 0,31%, tem 1,56% de representantes na Câmaras dos Deputados. Com isso, o
voto de um paulista radicado em Roraima tem um peso, em termos representativos,
oito vezes maior do que o voto de um roraimense que vive em São Paulo.
Há que se ter clareza que a
representatividade dos estados, enquanto unidade federativa em um modelo
bicameral, dá-se no Senado, não havendo, portanto, qualquer justificativa para
mantermos o status quo. Mas este é só um aspecto dentro tantos outros
problemas que temos criado ao longo do tempo.
Para expor meus argumentos, valho-me
inicialmente de dois pressupostos econômicos. O primeiro envolve o fato de que
quanto menores forem as barreiras à entrada nos mercados, maior será a
concorrência, fazendo com que as empresas incumbentes se esmerem em atender
melhor o consumidor (por exemplo, ofertando melhores produtos e serviços a
custos mais baixos).
Já o segundo está associado à ideia de que
a inexistência de assimetria informacional (ou seja, mais transparência sobre
as características e preços dos produtos ofertados e sobre as próprias firmas)
faz com que o consumidor realize escolhas melhores, mais adequadas aos seus
desejos, induzindo as empresas a serem mais eficientes e oferecerem o que o
mercado quer de fato.
No limite, a total ausência de barreiras à
entrada e a transparência plena tornam os mercados mais eficientes, gerando uma
concorrência mais efetiva e justa, além de permitir melhores escolhas por parte
dos demandantes. E o mercado político (de decisões legislativas, regulatórias,
etc.) não é muito diferente disso.
Nesse ambiente, podemos entender as leis
como o produto derivado da interação entre demandantes (o conjunto da
sociedade, representado pelos eleitores) e ofertantes (políticos que escrevem e
aprovam as leis). E esse produto será tanto melhor quanto mais os ofertantes se
esmerarem em atender aos verdadeiros anseios de seus demandantes.
Mas para que isso ocorra, devem prevalecer
os dois pressupostos econômicos destacados anteriores. Assim, quanto mais
informação os eleitores tiverem sobre a verdadeira capacidade e intenção dos
candidatos, maior a probabilidade de realizarem boas escolhas e,
consequentemente, maior a chance de o resultado legislativo ser positivo.
Na mesma linha, quanto maior for o número
de candidatos disponíveis (em condições isonômicas de concorrência) nas
eleições, mais cada candidato se esforçará para convencer e atender aos anseios
dos eleitores, principalmente em um ambiente de transparência plena sobre sua
vida pregressa e seus atos públicos e políticos.
Infelizmente esses dois pressupostos têm
sido atacados de todos os lados por aqui. Por exemplo, os fundos eleitoral e
partidário bilionários têm criado uma discrepância muito grande entre os
grandes partidos já estabelecidos, que carregam ideias arcaicas e são guiados
pelos grandes caciques, e aqueles menores e novos, que podem arejar o ambiente
político com novas ideias.
É como se os políticos da velha guarda
tivessem clareza que estão criando uma forte barreira à entrada no mercado
político, tornando seus atos menos contestáveis a novas visões; sem falar que
uma boa parte desse dinheiro é destinado a desperdícios com publicidade sem
sentido, jatinhos, viagens e até mesmo com bancas de advogados para se
defenderem de crimes eleitorais.
E o pior de tudo é que as reformas
políticas que tramitam no Congresso caminham no sentido de elevar ainda mais as
barreiras à entrada; e isso sob o pretexto de reduzir o número de partidos
pequenos, para evitar os efeitos deletérios do modelo político que chamam
erroneamente de “presidencialismo de coalisão”, mas que, na realidade, nada
mais é do que um “toma lá dá cá”.
Entretanto, vale lembrar que “mensalões”,
“petrolões” e, mais recentemente, o escárnio do caso do “Orçamento Secreto”,
envolvem majoritariamente a “compra enrustida de votos” de políticos de grandes
partidos, e não dos pequenos, que não têm muita força para alterar votações no
Congresso.
Em outras palavras, cláusulas de barreiras,
principalmente em um país como o nosso, cujas leis criminais para políticos têm
sido fortemente enfraquecidas, além de não resolver os problemas de corrupção,
só reforçam a situação atual e inibem a concorrência de novos políticos.
E por falar em “Orçamento Secreto”, como o
próprio nome já diz, sua dinâmica de liberação de verbas dificulta que os
eleitores saibam quais deputados estão manipulando recursos públicos e para
quais fins. Ou seja, a ausência de informação clara tem passado longe do nosso
atual Congresso, dificultando que os eleitores separem o “joio do trigo”.
Ainda neste capítulo, “menção honrosa” cabe
ao chamado “quociente eleitoral”, regra criada para limitar o número de
partidos, mas que permitiu que deputados com poucos votos e expressividade
política sejam eleitos pegando carona nos votos de “tiriricas da vida”, sem que
o eleitor previamente saiba disso no seu processo decisório.
Poderia discorrer sobre outros aspectos,
mas o fato é que nosso “mercado político” e, portanto, nossa democracia, não
tem funcionado de maneira eficiente, muito por conta das distorções criadas
pelos nossos próprios congressistas. Mas isso de maneira alguma tem qualquer
coisa a ver com nosso sistema de urnas eletrônicas.
“Texto publicado originalmente no UOL em 22/7/2022.”