terça-feira, 25 de junho de 2024

LULA PRECISA ENTENDER QUE NÃO FOI ELEITO PARA UM CARGO DE DITADOR

Presidente só demonstra que não lida bem com organizações forjadas e consolidadas em um ambiente democrático

Um dia antes da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que decidiu pela manutenção da taxa de juros Selic em 10,5%, o presidente Lula deu uma entrevista atacando ferozmente o presidente do Banco Central do Brasil (Bacen), Roberto Campos, e a decisão anterior do Copom. Infelizmente, essa foi só mais uma das tantas vezes de um longo histórico de ataques a instituições e organizações democráticas no país.

No caso em particular, em que pese o erro de Roberto Campos em se misturar com o universo político em São Paulo e ter votado com uma camisa amarela nas últimas eleições, estando investido do cargo de presidente do Bacen, os argumentos de Lula são, no mínimo, risíveis e não se sustentam sob um escrutínio mínimo de sua fala.

Em primeiro lugar, porque Roberto Campos tem apenas um voto dentre os nove que decidem, ou seja, ele sozinho não tem qualquer poder de decisão. Em segundo, porque fosse verdade a tese da posição política do presidente do Bacen, ele teria votado contra a elevação dos juros durante o governo Bolsonaro, principalmente às vésperas das últimas eleições para presidente.

Em terceiro, ao contrário do que o Presidente da República afirmou, não estamos hoje com a taxa de juros real mais elevada dos últimos tempos. Durante os dois primeiros governos Lula, o Bacen, com Henrique de Campos Meirelles, manteve os juros reais bem mais elevados do que hoje por um bom período. E, naquele momento, as finanças públicas não estavam tão debilitadas como agora. Assim, o prêmio de risco para emprestar para o setor público hoje é maior do que boa parte daquele período, o que certamente impacta o nível de juros atualmente fixado.

Em quarto lugar, porque o cenário internacional ainda está bastante nebuloso, o que indica que, neste momento, qualquer tentativa de forçar a queda da taxa de juros poderá implicar mais saída de capital do país, com o agravamento da depreciação cambial e impacto sobre a inflação futura.

Em quinto, sob o regime de metas de inflação, o que importa para efeito de decisão de qual deve ser a taxa de juros primária é a expectativa de inflação futura e não a inflação passada. E, nesse ponto, dado o cenário incerto gerado por uma política fiscal totalmente expansionista e uma série de declarações irresponsáveis do nosso Presidente da República, não há como ancorar as expectativas de inflação e reduzir os prêmios de risco dos ativos financeiros.

Em realidade, a fala do Presidente é acima de tudo a prova de quão correta foi a decisão de dar independência decisória ao Banco Central, que, ao fazer o seu trabalho de controlar a inflação, tem protegido a sustentabilidade do próprio governo Lula. Ao agir de maneira infantil, pressionando pela saída do atual presidente do Bacen, Lula só demonstra que não lida bem com organizações forjadas e consolidadas em um ambiente democrático, cuja atuação nada difere das melhores práticas internacionais.

Aliás, este não é o primeiro episódio de agressão institucional de Lula. Para quem não lembra, em 2004, o então presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Luiz Guilherme Schymura, apesar de ter mandato até 2005, foi retirado do cargo de maneira ilegal e arbitrária apenas porque queria fazer valer o reajuste firmado em contratos com as empresas de Telecomunicações.

Na época, o reajuste deveria seguir o IGP-DI, que havia subido muito pelo impacto derivado da desvalorização cambial do ano anterior (2003), associada ao medo da vitória do então candidato Lula, dadas as suas falas durante a campanha eleitoral de 2002. O fim dessa história foi a substituição do presidente da Anatel por um sindicalista do setor, o engenheiro eletricista Pedro Jaime Ziller, e o não cumprimento dos contratos de reajustes.

Aparentemente, não passaremos por situação semelhante no caso atual do Banco Central por duas razões. Em primeiro lugar, Lula já não tem mais a mesma força política que tinha naquela época, quando passava como um trator por cima do que bem entendesse. Em segundo, qualquer cálculo político mostra que Lula teria muito mais a perder se atropelasse o Bacen de hoje. Possivelmente essa última seja a razão mais importante.

E é fácil entender o porquê. Se lembrarmos de uma pesquisa realizada pelo Datafolha no ano passado, 80% dos entrevistados diziam entender que Lula agia bem ao pressionar pela queda dos juros, ou seja, existe uma percepção da população, em geral, que a redução da taxa de juros é muito mais uma vontade política do que uma questão técnica.

Nessa linha, é muito cômodo para o atual Presidente criar um “inimigo imaginário” da nação, no melhor estilo “a culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser”. Traduzindo, “dado que eu não quero ajustar as contas públicas por razões políticas, eu transfiro a culpa do crescimento limitado da economia para o meu inimigo imaginário; no caso, a política monetária correta executada pelo atual Bacen.

Essa estratégia também tem a vantagem de manter um “inimigo imaginário” do país associado ao Bolsonaro em ano eleitoral, sabendo que, na virada do ano, o atual Presidente poderá escolher os novos diretores que, em conjunto com os já indicados por ele recentemente, serão os responsáveis pela condução da política monetária no próximo ano.

O único problema é que os agentes econômicos já estão precificando o que vem pela frente. Dólar, juros futuros, bolsa de valores e até mesmo as expectativas de inflação não estão dando bons sinais, ainda mais quando se olha para as perspectivas das contas públicas.

Neste contexto, colocar em dúvida a independência e sustentabilidade do Banco Central, construídas arduamente em um ambiente democrático, é o mesmo que questionar as “regras do jogo” no meio da partida, gerando mais incerteza sobre a rentabilidade futura de eventuais investimentos a serem realizados no país.

Lula precisa definitivamente entender que a vitória em uma eleição presidencial não lhe confere um poder ditatorial para conduzir o país da forma como bem entender, ignorando todas as instituições construídas ao longo do tempo, que representam as “regras do jogo” (principalmente as jurídicas formais) que regem o comportamento dos agentes econômicos e estruturam as interações negociais na sociedade.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 25/6/2024.”

terça-feira, 18 de junho de 2024

PRECISAMOS FALAR HONESTAMENTE SOBRE O NOSSO PROBLEMA FISCAL

É nítido que nossa carga tributária elevada é totalmente incompatível com um país com o nível de renda que apresentamos

Tenho criticado os seguidos governos brasileiros por ignorarem ou deixarem de lado o problema fiscal do país. E a razão para isso é simples. Estamos, aos poucos, contratando uma crise econômica futura de proporções semelhantes às que vivemos na década de 80 e início dos anos 90.

 o recém natimorto arcabouço fiscal foi mais uma etapa nesse processo, na medida em que já apresentou no seu DNA uma liberalidade para criar gastos futuros permanentes. E isso tem ficado cada dia mais claro. Não por outra razão, a desconfiança do mercado elevou-se substancialmente na última semana.

No fundo, o Ministro da Fazenda,  Fernando Haddad, também já percebeu o problema, só que tem procurado a solução, tanto de forma técnica quanto política, de maneira equivocada. A reoneração da folha de pagamento, do final do ano passado, e a recente limitação para a utilização de créditos tributários vinculados ao PIS/COFINS foram dois exemplos disso.

Tecnicamente, desconsideraram por completo o ciclo de planejamento das empresas afetadas por essas medidas. Politicamente desconsideraram que enfrentariam forte oposição no Congresso. Particularmente não divirjo da ideia de que o país precisa acabar com gastos tributários (desonerações e incentivos fiscais) seletivos, mas isso deve ser feito no âmbito da discussão da reforma tributária, dando total previsibilidade para que o setor privado se adeque às mudanças, com o devido tempo.

Infelizmente, essas tentativas desesperadas de reoneração tributária só serviram para apontar duas contradições do atual governo petista. A primeira é que Haddad está tentando corrigir um problema criado pela então presidente Dilma Rousseff (no caso da desoneração da folha de pagamentos). A segunda é que, ao mesmo tempo em que o governo propõe reonerar alguns setores sob o argumento de corrigir o déficit fiscal, resolve desonerar e subsidiar outros, como o caso da indústria automobilística, que recebeu de presente o Programa de Mobilidade Verde (Mover).

Fato é que cada dia fica mais claro que não há mais espaço para aumento de arrecadação. É nítido que nossa carga tributária elevada é totalmente incompatível com um país com o nível de renda que apresentamos. E pior, quanto mais recursos extrairmos do setor privado, menos investimentos teremos e, consequentemente, continuaremos a apresentar um nível de crescimento incompatível com a nossa necessidade. 

Não por outra razão, o foco da discussão recairá a partir de agora sobre os gastos públicos. E, nesse aspecto, não basta cobrarmos apenas o Executivo. Legislativo e Judiciário também precisam aprender a ser mais responsáveis fiscalmente, não só contribuindo para a redução de despesas correntes mas, também, entendendo o efeito de suas respectivas decisões sobre as contas públicas do país.

É totalmente inadmissível, por exemplo, que o legislador continue criando despesas obrigatórias sem indicar como contrapartida a fonte de receita para financiá-la. Da mesma maneira, há decisões espalhadas por todo o Judiciário que implicam elevações de gastos públicos sem qualquer base lógica e que implicitamente assumem que os recursos públicos são ilimitados.

No capítulo da imoralidade, poderíamos lembrar dos fundos Eleitoral e Partidário bilionários no Legislativo e as emendas impositivas dos parlamentares, que não seguem qualquer critério de alocação ótima do gasto público. Ainda nesta linha, vale lembrar dos supersalários do Judiciário, a proposta de retorno do quinquênio para juízes, dentre outros tantos gastos correntes evitáveis (inclusive o de passagem aérea paga para que segurança acompanhe Ministro do Supremo em jogo de futebol no exterior).

De toda forma, a maior parte no corte dos gastos públicos caberá ao Executivo, que pode atuar em várias linhas complementares. A primeira delas envolve cortes que dependem apenas do próprio governo de plantão, como, por exemplo, a revisão e melhoria na gestão de contratos já vigentes, adoção de melhores práticas no processo de compras governamentais e modificação da política salarial de entrada de novos servidores públicos e de reajustes posteriores.

Uma segunda linha de atuação passa pela unificação e racionalização de políticas sociais que visem evitar duplicidades de pagamentos e reduzir o “custo de transação” do setor público na sua interação com a sociedade. Em uma breve pesquisa nos sites do governo, é possível identificar um leque enorme de programas como, por exemplo, “auxílio brasil, auxílio reclusão, auxílio gás, farmácia popular, salário-família, salário-maternidade, seguro-defeso, BPC e abono salarial”.

A terceira linha, e de fundamental importância para não termos um apagão do Estado brasileiro ainda nesta década, é a revisão das vinculações constitucionais que definem gastos obrigatórios atrelados à receita corrente líquida, principalmente aqueles relacionados à saúde e educação. Esses valores, congelados durante a vigência da regra do teto de gastos, voltaram a crescer descontroladamente com a aprovação do arcabouço fiscal.

A quarta vertente envolve decisões estruturais com impacto observado apenas no longo prazo, mas que sinalizam para a sustentabilidade das contas públicas. Nesse grupo está incluída a Reforma Administrativa e a complementação da Reforma da Previdência.

A Administrativa deveria buscar a racionalização das carreiras existentes, criação de incentivos adequados e a revisão dos modelos de remuneração. Não é possível, por exemplo, que algumas carreiras jurídicas ganhem salários elevadíssimos para o padrão privado e ao mesmo tempo recebam bonificações por apenas realizar suas respectivas obrigações. Já a segunda reforma (da Previdência) terá que objetivar a sustentabilidade atuarial do nosso sistema previdenciário, algo que ainda não foi obtida com as reformas passadas.

Por fim, deveríamos, sim, atacar os gastos tributários, mas de uma maneira ampla e irrestrita, e dentro de uma reforma tributária completa, que envolva, inclusive, acabar com abatimentos na declaração do imposto sobre a renda. E, nesse caso, os “beneficiários de sempre” terão que ceder para que haja uma recalibração de impostos dentro da sociedade, com a consolidação de uma estrutura tributária mais eficiente e justa.

E isso deveria implicar também acabar gradativamente com fundos regionais e com a própria Zona Franca de Manaus, que só distorcem a alocação de recursos produtivos e que em nada contribuem para o desenvolvimento do país e para a correções da péssima distribuição de renda hoje observada.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 18/6/2024.”


terça-feira, 11 de junho de 2024

O CURIOSO CASO DA “TAXA DAS BLUSINHAS”: DISCUSSÃO QUE NÃO FOI TRAVADA

O consumidor perderá o poder de compra e o governo arrecadará mais, como de costume

Na última semana, foi aprovada a chamada  “taxa das blusinhas”, que nada mais é do que a imposição de um imposto de importação federal (II) de 20% sobre compras internacionais cujo valor seja de até US$ 50. Vale lembrar que esse novo imposto irá se juntar aos 17% de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) já cobrados pelos estados. Como o ICMS é cobrado “por dentro” (cálculo realizado sobre o valor total do produto), a tributação agregada dos dois impostos será de 44,58%.

Em realidade, essa nova alíquota deve impactar diretamente a compra realizada em sites estrangeiros, tais como Shein, Shopee e AliExpress. Vale destacar que a aprovação foi por votação simbólica, o que permitiu que a maioria dos congressistas que concordaram com essa cobrança se escondessem de seus eleitores, em uma atitude covarde e antidemocrática, indicando total falta de transparência do parlamento.

Várias entidades empresariais nacionais se manifestaram a favor da introdução desse imposto, alegando que essa medida corrigiria uma assimetria tributária, com impacto positivo sobre o nível de investimentos e empregos no país. De outra parte, as grandes varejistas internacionais de e-commerce argumentam que, com a imposição dessa alíquota, o consumidor pagará mais caro pelo produto adquirido.

No fundo, nessa discussão, os dois grupos até podem ter um pouco de razão, mas o foco do problema será sempre o mesmo: o Estado brasileiro, que quer elevar sua arrecadação. E explico a razão do meu entendimento com base na lógica que permeia toda a discussão teórica e prática sobre o que se conhece em economia como “tributação ótima”.

Inicialmente, há que se entender que, ao contrário do senso comum, não será o consumidor que arcará com a totalidade do aumento imposto. Seja direcionado diretamente para o consumidor, seja para o empresário que vende a mercadoria, o pagamento do tributo acaba sendo sempre compartilhado entre ambos. Já a proporção que caberá a cada um dependerá das condições competitivas do mercado e da capacidade de ajuste da oferta dos empresários.

Entretanto, podemos dizer que alguma elevação de preços sempre haverá, corroborando em parte o entendimento das plataformas de comércio. E, neste contexto, os consumidores sempre sairão perdendo, na medida em que uma parte deles continuará a comprar o produto pagando mais caro e a outra deixará de comprar o bem importado, entendendo que o nacional equivalente também é muito caro. A questão que fica é saber, portanto, qual o impacto agregado desses dois efeitos para a indústria brasileira.

Sob esse aspecto, podemos levantar algumas hipóteses. Em primeiro lugar, parte da demanda daqueles consumidores que continuarão a comprar o produto poderá ser redirecionada para o concorrente nacional, conforme sugerido pelos empresários brasileiros que defendem a medida (gerando uma espécie de efeito substituição). Mas, outra parte continuará comprando o importado em plataformas internacionais.

De toda maneira, como esses dois grupos continuarão a comprar o produto alvo da nova alíquota com um preço mais elevado, eles terão uma redução de renda disponível para comprar outros produtos nacionais que consumiam anteriormente (ou, no limite, terão que buscar financiamento para manter o mesmo nível de consumo). 

Como consequência, uma outra parte do empresariado nacional que não concorre com os produtos importados verá sua demanda reduzida. Nesse caso, o efeito observado será diametralmente oposto ao sugerido pelos defensores da elevação da alíquota de importação, ou seja, haverá desemprego nesses segmentos de mercado.

Já aqueles consumidores que compram produtos importados e deixarão de fazê-lo porque o preço subiu e que, ao mesmo tempo, entendem que o substituto nacional é muito caro, poderão redirecionar seu consumo para outros produtos nacionais. A não ser que guardem o dinheiro que não gastarão ou resolvam pagar eventuais dívidas já contraídas, esse movimento poderá criar um vetor positivo de demanda para certas empresas (com eventual contratação de novos empregados).

De toda forma, o efeito líquido desse processo para o conjunto de empresas nacionais não é claro. Em que pese poder haver uma rebalanceamento de demanda e até mesmo de margem de lucros dentro dos vários setores nacionais, o efeito alocativo (contratação de mão-de-obra, investimentos, etc.) final não é algo trivial de ser estimado. 

E, mais do que isso, qualquer conclusão sobre qual será o efeito agregado para a sociedade dependeria da realização de um estudo de equilíbrio geral que conseguisse captar o impacto sobre o nível de renda derivado de alterações em uma série de variáveis econômicas (tais como reações de empresários e de consumidores a mudanças de preços e de tributação), algo que nem de longe foi realizado. 

Em outras palavras, como de costume, há muito discurso de políticos e pressões de lobbies em favor de protecionismo e pouca análise séria e objetiva sobre o resultado efetivo final dessa alteração legislativa. De toda essa história, as únicas certezas que podemos ter é de que o consumidor perderá poder de compra e o governo arrecadará mais, como de costume.

Note-se que se o problema é, de fato, criar uma isonomia tributária, o correto seria reduzir a tributação sobre o consumo no país. Só assim poderíamos verificar efeitos positivos para o conjunto da sociedade. Entretanto, isso implicaria também fazer uma reforma tributária séria e completa (recalibrando impostos para a renda) e, principalmente, uma revolução na gestão da coisa pública (entenda-se melhorar substancialmente a eficiência do gasto público), algo pouco crível no nosso contexto político atual.

“Texto publicado originalmente no portal IG em 11/6/2024.”