Debêntures incentivadas são um instrumento financeiro que permite às empresas captar recursos a um custo menor
Nos últimos dias, começou a aparecer nos principais
portais econômicos do país, notícia de que o governo pretende restringir o uso
das denominadas debêntures incentivadas. Do quanto pude ler, seriam dois tipos
de restrições.
A primeira, seria a limitação do uso deste instrumento por
setores que têm apresentado uma rentabilidade maior, particularmente o de óleo
e gás. A principal justificativa estaria na necessidade de direcionar esses
recursos para outros setores que teriam maior necessidade de financiamento
barato, como os de energias renováveis, saneamento e linhas de transmissão de
energia elétrica.
Já a segunda medida envolveria a restrição à utilização do
dinheiro obtido para pagamento de outorgas. Neste caso, o objetivo seria
reduzir a competição nos leilões para baixar o valor da outorga e,
consequentemente, o preço das tarifas para o consumidor.
Para entender melhor o que está em discussão, devemos
lembrar que as debêntures incentivadas são um instrumento financeiro que
permite às empresas captar recursos a um custo menor, com objetivo de financiar
projetos de infraestrutura. Em grande parte, essa vantagem está associada ao
fato que os compradores desse papel (os investidores) contam com isenção ou
redução de Imposto de Renda sobre os lucros obtidos.
Em última instância, esses recursos acabam por reduzir o
custo do investimento (CAPEX) das empresas, fato que se reflete, por si só, em
tarifas potencialmente mais baixas para o consumidor. No fundo, custo a
acreditar que as informações divulgadas partiram de dentro do governo,
pelo primarismo dos argumentos apresentados.
A concorrência por recursos financeiros não se dá
unicamente entre setores que podem emitir debêntures para infraestrutura.
Poupadores e investidores olham todas as oportunidades do mercado e escolhem
aquelas que apresentarem a melhor combinação risco e retorno esperado, dadas
suas preferências. E isso nos leva a duas conclusões.
A primeira é a de que tornar menos atrativo as debêntures
de dado setor não implica automaticamente a migração desses investimentos para
debêntures de outros setores que o governo deseja. Já a segunda conclusão é a
de que, para investir em setores de maior risco, o investidor acaba exigindo
retornos maiores. E essa pode ser a razão de debêntures de alguns setores
gerarem uma rentabilidade maior do que a de outros. Ou seja, a diferença de
rentabilidade pode ser apenas o reflexo de diferentes riscos incorridos.
Mas para além dessas questões, o mercado de capital tende
a precificar o risco de empréstimo de maneira distinta, a depender do tamanho
da empresa que demanda recursos. Neste contexto, empresas menores podem ter
mais dificuldade para obter financiamento mais barato. E nessas condições,
eliminar uma fonte mais barata de capital pode representar menor capacidade
competitiva para as empresas menores, fortalecendo o poder de mercado das
grandes, com reflexo sobre o preço praticado ao consumidor final. Esta é uma
questão a se pensar no caso do setor de óleo e gás no Brasil.
No que tange à restrição ao uso do recurso captado com
debênture incentivada em leilões, os argumentos fazem menos sentido ainda. Logo
de partida, a questão posta é como diferenciar o dinheiro obtido via debêntures
de outros recursos que entram no caixa da empresa? E se o primeiro for, de
fato, direcionado a investimentos e os demais assim liberados para pagamento da
outorga?
O cerne da questão é que associar o valor de outorga à
tarifa praticada não tem o mínimo sentido. Devemos entender que a lógica de um
leilão competitivo de maior valor de outorga é a de que o vencedor deve ser
aquele que está disposto a pagar mais pelo direito de prestar um dado serviço;
e, como externalidade positiva, o Estado acaba arrecadando mais recursos para
atender às demais demandas da sociedade.
Mais do que isso, o valor de outorga mínimo, ou mesmo a
outorga efetivamente paga pelo privado, não deve entrar no processo de
precificação do negócio (denominado valuation). Ao contrário, ela
representa o próprio valor do negócio, sendo o resultado de uma modelagem
financeira que leva em conta as receitas estimadas – inclusive a tarifa
prevista - e todos os custos envolvidos, inclusive o de capital. Dito de outra
forma, a tarifa é parte das variáveis que definem o valor da outorga, mas o
inverso não ocorre.
Em última instância, a tarifa inicial já estará definida
no processo de modelagem e a regra de reajuste dependerá do modelo regulatório
definido pela agência reguladora no edital do leilão. Neste sentido, em um
ambiente regulatório adequado, o valor da outorga paga pelo privado não afeta a
tarifa inicial e muito menos deve justificar qualquer solicitação de
reequilíbrio econômico-financeiro do negócio, seja ele ordinário ou
extraordinário, que implique reajuste tarifário.
Por outro lado, alterar as regras das debêntures
incentivadas implicará, sim, a elevação do custo do capital, cuja consequência
será o aumento da tarifa definida inicialmente, a redução da outorga paga ou um
mix das duas coisas.
Se a intenção do governo fosse realmente reduzir as
tarifas, haveria outras formas, tal como a mudança para um leilão do tipo
“menor tarifa” (com os problemas subjacentes que carrega) combinada com
aperfeiçoamento de regras de competição dos modelos de leilões adotados
atualmente.
Fato é que de todos os argumentos que apareceram na imprensa até o momento sobre eventuais restrições às emissões e à utilização de debêntures incentivadas, o único que teria algum sentido lógico é o de que, mais uma vez, o nosso Ministro da Fazenda está passeando para todos os cantos com o pires na mão buscando arrecadar mais recursos para fazer frente às demandas de gastos do presidente Lula e de nossos congressistas.
“Texto publicado originalmente no portal IG em 23/3/2024.”